“Brasil Mestiço” (EMI-Odeon, 1980), Clara Nunes


Clara Nunes encerrou a década de 1970 de maneira vitoriosa. Se tornou uma das maiores cantoras brasileiras, com milhões de discos vendidos e dezenas de canções entre as mais executadas no rádio e na TV no Brasil. Quebrou o tabu de que no Brasil cantoras vendem poucos discos: Clara foi a primeira cantora brasileira a vender mais de 1 milhão de cópias de um mesmo álbum, feito esse ocorrido com o álbum Claridade(1975). Contribuiu para a revitalização do samba nos anos 1970, trazendo o gênero de volta às paradas de sucesso e de vendagens de discos, após atravessar toda a década de 1960 ofuscado pela bossa-nova e pela Jovem Guarda. Além disso, Clara levou para as grandes massas, toda a beleza, a sabedoria e os mistérios da cultura afro-brasileira através de seus sucessos.

Mas naquele fim de década, nem tudo foi maravilhoso. Clara nutria o sonho de ser mãe, e por causa disso, submeteu-se a vários tipos de tratamento para engravidar, mas todos fracassaram. Em 1979, Clara Nunes passou por uma histerectomia, após o terceiro aborto provocado por miomas que ela possuía em seu útero. A retirada do útero pôs fim ao sonho de gerar um filho.

Para aplacar o duro golpe que sofreu, Clara decidiu focar mais ainda no trabalho, e mais do que isso, aprimorar a sua consciência política e social. Foi a partir do final dos anos 1970 que Clara Nunes começou a se posicionar, a ser uma artista mais consciente politicamente e não apenas uma mera cantora campeã em vendas de discos. O Brasil passava por uma transformação importante no cenário político com a Lei da Anistia, em 1979, que trouxe de volta para o país os exilados políticos que foram expulsos pela ditadura militar. Com a Censura menos rígida, os ventos da redemocratização começaram a soprar, e os artistas se mostravam mais esperançosos por tempos melhores. Provavelmente, Clara Nunes foi um daqueles artistas que sentiram os ventos de um Brasil mais democrático, daí um dos motivos do despertar da sua consciência política.


Clara Nunes entre duas crianças em detalhe da capa do álbum Esperança, de 1979:
sonho da maternidade interrompido. 

Em maio de 1980, Clara Nunes fez parte de um grupo de cerca de 60 artistas da música brasileira que partiu numa viagem para Angola para uma série de apresentações naquela país. O grupo fez parte do chamado Projeto Kalunga, que integrou uma parte da nata da música popular brasileira como Chico Buarque, Dorival Caymmi, Edu Lobo, Elba Ramalho, Djavan, João Nogueira, Dona Ivone Lara, e claro, Clara Nunes. As apresentações dos brasileiros ocorreram nas cidades angolanas de Luanda, Lobito e Benguela, e toda a renda foi revertida para a construção de um hospital em Angola. Os artistas brasileiros contaram com participação de alguns artistas angolanos. Clara Nunes retornou para o Brasil bastante impressionada com a causa social do projeto, e demonstrava o interesse em ser uma artista mais engajada, mais comprometida com o bem-estar das pessoas.

As gravações do 14º de estúdio de Clara Nunes, Brasil Mestiço, ocorreram em junho de 1980. Mesmo com repertório do álbum definido, Clara pediu uma canção para Chico Buarque para gravar. Durante a viagem a Angola, Chico havia prometido uma música a Clara para o próximo álbum dela. Às vésperas de embarcar para os Estados Unidos, Chico entregou a canção que prometera para Clara. Tratava-se de “Morena de Angola”, inspirada na viagem que fizeram a Angola. A canção deixou Clara Nunes felicíssima.


Lançado em 18 de agosto de 1980, Brasil Mestiço traz um repertório diversificado em que Clara, embora tenha se notabilizada como uma grande cantora de samba, mostra-se uma artista versátil. O álbum tem desde partido-alto e samba-canção a marcha-rancho e baião.

Do ponto de vista conceitual, Brasil Mestiço apresenta Clara Nunes mais envolvida com a ancestralidade afro-brasileira. Ela que já havia incorporado ao seu figurino referências da religiosidade afro-brasileira, bem como era convertida à Umbanda, passou a partir deste álbum a se apresentar com os cabelos crespos, volumosos e soltos, ressaltando abertamente a sua condição de mulher mestiça brasileira, estando assim completamente coerente com o título do álbum.

A capa de Brasil Mestiço mostra Clara Nunes dançando alegremente o jongo com a ialorixá Vovó Maria Joana, tendo ao fundo o Mestre Darcy do Jongo tocando atabaque. As sessões de fotos para a capa foram feitas no Morro da Serrinha, no Rio de Janeiro, sob o comando do fotógrafo Wilton Montenegro.

O álbum começa com “Morena de Angola”, música composta por Chico Buarque especialmente para Clara Nunes. A música era uma promessa de Chico a Clara durante a viagem que fizeram a Angola pelo Projeto Kalunga, juntamente com outros artistas. Promessa feita, promessa cumprida, e muito bem cumprida: “Morena de Angola”, inspirada na viagem a Angola, se tornou um dos maiores sucessos da carreira de clara Nunes. A canção traz como curiosidade o verso “Morena, bichinha danada, minha camarada do MPLA”. A sigla MPLA significa Movimento Popular de Libertação de Angola, um movimento de luta pela independência de Angola conquistada em 1975, quando aquele país deixou de ser colônia de Portugal. Depois da independência de Angola, o MPLA virou um partido político, e há anos está no poder.

Para conseguir rimar a palavra “canela” com MPLA, Chico Buarque criou uma estratégia mexendo no jogo das sílabas tônicas na pronúncia da sigla. Ao invés de pronunciar letra por letra (“eme-pê-éle-a”) como faria qualquer brasileiro, a sigla é pronunciada de forma parecida como os angolanos pronunciam a sigla do partido: “eme-pe-lá”. Facilitava, mas ainda assim não rimava, pois, canela é paroxítona, e a pronuncia angolana da sigla é oxítona. A solução encontrada por Chico foi transformar a forma angolana de pronunciar a sigla de oxítona para paroxítona: “eme-pé-la”. Desta maneira, foi possível rimar a palavra “canela” com a sigla do partido angola. Quem prestar atenção, vai perceber que Clara pronuncia a sigla como “eme-pé-la”.

Promessa cumprida: Chico Buarque havia prometido uma música para o
novo disco de Clara. E para ela compôs "Morena de Angola". 

A faixa seguinte, “Sem Companhia”, é um samba-canção de autoria de Paulo César Pinheiro (marido de Clara Nunes) e Ivo Lancellotti, que trata sobre desilusão no amor. Os versos da canção retratam sobre alguém que busca o seu grande amor a cada relacionamento, mas o que encontra é decepção e frustração: “E assim de quando em quando / Eu fui amando mais / Passei por ventos brandos / Passei por temporais”. Resta a esse alguém uma “paz insuportável” sem companhia.

Depois da melancolia de “Sem Companhia”, vem a alegria de “Viola de Penedo”, um baião animado que mostra que além de grande cantora de samba, Clara Nunes mostrava que tinha talento de sobra para cantar forró. “Ninho Desfeito”, outro samba-canção presente no álbum, versa sobre a saudade do amor que partiu e a esperança dele voltar: “No entanto, eu espero sem desesperar / Pois sei que voltarás um dia / Sei que virás novamente / Enfeitar nosso lar de prazer e alegria”.

O romantismo e as dores do amor prosseguem em “Coração em Chama”, um samba bonito e charmoso. Ao contrário da canção anterior que trata sobre a saudade e a tristeza do amor que foi embora, em “Coração em Chama” o eu lírico tenta entender o porquê de estar triste mesmo tendo seu amor ao lado: “Por que eu vivo triste agora? / Pergunto ao coração que chora / Se tenho um grande amor”.

“Peixe com Coco” fecha o lado A de Brasil Mestiço fazendo um convite apetitoso para um jantar na casa de Terezinha. Esse samba de partido-alto, além de alegre e descontraído, é de dar água na boca de quem ouve.

Clara Nunes na sessão fotos para a capa do álbum Brasil Mestiço,
no Morro da Serrina, no Rio de Janeiro.

A fé nas religiões de matriz africana é o tema de “Brasil Mestiço, Santuário de Fé”, que abre o lado B do álbum. O arranjo da música é inspirado no jongo, gênero musical ancestral do samba, que chegou ao Brasil através dos negros africanos trazidos como mão de obra escrava. Clara Nunes canta com voz forte e imponente, versos que ressaltam o papel dos ritmos e das danças afro-brasileiras como instrumentos de resistência do povo negro a toda forma de opressão que sofreu desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil.

“Dia a Dia” é sobre a vida árdua que o trabalhador brasileiro leva em troca de um “salário de fome” para sustentar a família: “Não é mole não / Acordar segunda-feira / Pra tentar ganhar o pão”. A música carrega forte carga de denúncia social, confirmando o interesse que Clara Nunes vinha tendo em abordar a dura realidade vivenciada pelas camadas mais pobres da população. Passadas tantas décadas, o samba composto por Candeia e Jaime, e interpretado brilhantemente por Clara, é de uma atualidade assombrosa.

A princípio, “Estrela Guia”, composta por Paulo César Pinheiro e Sivuca, aparenta ser uma inocente marcha-rancho qualquer relembrando os antigos carnavais de meados do século XX. Mas prestando uma maior atenção na letra da música, percebe-se que seus versos possuem um sutil teor político e que refletem o momento em que o Brasil passava entre 1979 e 1980, período de abertura política proporcionada pela Lei da Anistia. Os versos se referem, ainda que sutilmente, a uma esperança num Brasil democrático, livre das amarras do regime ditatorial aos quais o país estava submetido: “Ah! A estrela guia vai romper / E alguém no povo vai nascer / E o nosso tempo de chorar / Vai se acabar”. A esperança num país livre de uma ditadura militar fica mais evidente nos versos finais da canção: Vão se calar os fuzis / Vão se beijar os casais / Pela esperança de um povo em paz”.


O movimento pela anistia aos presos políticos no final dos anos 1970
teria inspirado a canção "Estrela Guia". 

O samba-canção é uma vertente do samba que se notabilizou por versar sobre as dores e a desilusão do amor. Mas em “Regresso”, samba-canção de Candeia, a música trata sobre a volta de um grande amor, de maneira surpreendente, sem avisar: “Canto, canto com alegria / Hoje a nostalgia está triste / Sentindo o cantar que em meu coração bate / Tão forte e contente / Dizendo a toda gente / Que voltaste ao meu lar”. Enfim, um samba-canção que trata de alegria e felicidade no amor.

Em “Meu Castigo”, o amor pode fazer sofrer e ser um castigo: “Eu tô procurando te esquecer / Mas não consigo / E andam dizendo que você / Foi meu castigo”. Fechando o álbum, “Última Morada”, samba de Natal e Noca da Portela em que Clara canta versos premonitórios: “Quando eu morrer / Eu quero uma batucada / Pra me levar / À minha última morada”.

Brasil Mestiço foi muito bem recepcionado pela crítica, e como era de se esperar, teve um ótimo desempenho comercial, embora os números das vendas sejam controversos. Há informação de que o álbum vendeu mais de 500 mil cópias, outros de que foi pouco mais de 2 milhões de cópias. “Morena de Angola” e “Viola de Penedo” foram as faixas do álbum mais tocadas pelas emissoras de rádio de todo o Brasil. As duas músicas ganharam videoclipes no programa Fantástico, da TV Globo.

Em janeiro de 1981, Clara Nunes estreou o espetáculo Clara Mestiça, no Teatro Clara Nunes (de propriedade da cantora), no Rio de Janeiro, sob direção de Bibi Ferreira, cenário criado por Elifas Andreato e roteiro de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós. O espetáculo, que teve como base o álbum Brasil Mestiço, foi sucesso de público e de crítica, e permaneceu em cartaz no Rio por sete meses. Em agosto do mesmo ano, o espetáculo estreou no Canecão-Anhembi, em São Paulo, onde ficou em cartaz por dois meses.

Faixas

Lado A

  1. "Morena de Angola" (Chico Buarque)            
  2. "Sem Companhia" (Ivor Lancellotti, Paulo César Pinheiro)
  3. "Viola de Penedo" (Luís Bandeira)
  4. "Ninho Desfeito" (Nelson Cavaquinho, Wilson Canegal)     
  5. "Coração em Chama" (Elton Medeiros, Mauro Duarte)       
  6. "Peixe com Coco" (Alberto Lonato, Josias, Maceió do Cavaco)

Lado B

  1. "Brasil Mestiço, Santuário da Fé" (Mauro Duarte, Paulo César Pinheiro)  
  2. "Dia a Dia" (Candeia, Jaime) 
  3. "Estrela Guia" (Sivuca, Paulo César Pinheiro)            
  4. "Regresso" (Candeia)
  5. "Meu Castigo" (Paulo César Pinheiro)           
  6. "Última Morada" (Noca da Portela, Natal)

Referências:
O voo das palavras cantadas – Carlos Rennó, 2014, Dash Editora
Clara Nunes: Guerreira da utopia – Vagner Fernandes, 2019, Editora Agir



"Morena de Angola"  


  "Sem Companhia" 


"Viola de Penedo" 


"Ninho Desfeito"   


"Coração em Chama"  


   "Peixe com Coco" 


"Brasil Mestiço, Santuário da Fé"  


"Dia a Dia" 


"Estrela Guia"       


"Regresso" 


"Meu Castigo"    


     "Última Morada"


"Morena de Angola"
(videoclipe original para o
"Fantástico", TV Globo, 1980)


"Vila de Penedo"
(videoclipe original para o
"Fantástico", TV Globo, 1980)

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