“Nação” (EMI-Odeon, 1982), Clara Nunes




Por Sidney Falcão

Após uma década em que se revelou uma das maiores cantoras do Brasil e campeã em vendagens de discos, a década de 1980 que se iniciava mostrava-se promissora para Clara Nunes. Embora tenha alcançado a fama como cantora de samba, Clara demonstrava uma vontade de não se prender a apenas um estilo musical.

A partir de 1977, Clara passou a experimentar outros estios musicais, mas sempre priorizando estilos brasileiros como ritmos nordestinos como o xote e baião, e afro-brasileiros como o jongo e o ijexá. E as suas incursões foram da bolha do samba foram surpreendentes e bem-sucedidas. “Feira de Mangaio”, por exemplo, do álbum Esperança (1979), é um forró que ela gravou com Sivuca e que se tornou um dos maiores sucessos da sua carreira, e comprovava que Clara não era apenas uma grande sambista, mas que podia trilhar em outras esferas musicais. O que não era uma novidade, pois Clara era uma cantora romântica de bolero e samba-canção nos primeiros discos, muito diferente do que ela viria a ser depois.

Nos álbuns seguintes, Clara prosseguiu com as suas incursões fora do samba. Em Brasil Mestiço, álbum de 1980, cuja faixa principal é “Morena de Angola”, Clara gravou o forró “Viola de Penedo”, que fez sucesso e ajudou ao álbum vender 500 mil cópias. No álbum seguinte, Clara, de 1981, ela gravou dois forrós “Magoada” e “Como É Grande e Bonita A Natureza”. No entanto, havia um predomínio de sambas, ainda que variassem entre o samba tradicional carioca ao samba com influência com influência das músicas de região de matriz africana como Candomblé, religião da qual ela era convertida.

Em 1982, Clara decide gravar um álbum com um repertório ainda mais variado musicalmente, mas que ao mesmo tempo, é dedicado às raízes negras que ajudaram a compor o povo brasileiro. Não à toa, o álbum foi batizado de Nação, título que também nomeia um samba composto por João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio e que Clara gravou para o álbum. Nação sintetiza muito nas suas dez faixas toda a obra de Clara Nunes, e aponta caminhos que a sua música poderia trilhar no futuro.

E é justamente esse samba quem abre o álbum, cuja letra possui um entendimento complexo. Ao mesmo tempo que ressalta a ancestralidade do povo afro-brasileiro, ao citar jeje (um dos povos africanos trazidos como escravos para o Brasil entre os séculos 18 e 19), alguns versos parecem trazer críticas veladas ao regime ditatorial que governava o Brasil na época. Os versos “Jêje / Tua boca do lixo / Escarra o sangue / De outra hemoptise / No canal do mangue” poderiam estar se referindo à tortura pela qual passavam os presos políticos (‘escarra sangue”), nos porões da ditadura (“no canal do mangue”). A letra é cheia de referências à cultura afro-brasileira, à fauna e à flora do Brasil e até mesmo a personagens da história do país como Caramuru e Anhanguera.

Na sequência, “Menino Velho”, um misto de samba e chula. “Ijexá”, do baiano Edil Pacheco, aproxima Clara Nunes ao gênero musical que dá nome à música que tocado pelos afoxés no carnaval baiano como o tradicional Filhos de Gandhy, para o qual a música é dedicada. Oriundo da Nigéria, o ijexá veio para o Brasil com os negros escravizados, encontrou abrigo nas cerimônias religiosas nos terreiros de Candomblé de Salvador, e depois ganhou as ruas da capital baiana no carnaval através dos afoxés. “Ijexá”, a canção, ressalta a beleza e os valores de um povo sofrido como o povo negro.
Assim como “Menino Velho”, “Vapor de São Francisco” é outra composição da dupla Romildo e Toninho Nascimento presente no álbum Nação. Misto de samba e jongo, “Vapor de São Francisco” faz referência às antigas embarcações que navegavam o Rio São Francisco, entre Pirapora, em Minas Gerais, e Juazeiro, na Bahia, e que tiveram o seu auge entre meados do século 19 até a década de 1970, no século 20.

Fechando o lado A da versão LP de Nação, “Novo Amor”, primeiro momento romântico do álbum. A canção é uma bossa nova de Chico Buarque em que ressalta a versatilidade de Clara Nunes como intérprete. A letra trata sobre uma mulher que sabe da existência de um novo amor na vida do que ama. Mas ela diz a essa outra mulher que esse homem voltará para ela.

Clara Nunes em sessão de fotos de divulgação do álbum Nação.

O lado B começa grande estilo com o samba exaltação “Serrinha”. Composta por Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro (marido de Clara Nunes), “Serrinha” é uma homenagem à escola de samba Império Serrano e ao Morro da Serrinha, em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, onde se localiza a agremiação. O Morro da Serrinha é conhecido pela prática do jongo, dança e estilo musical africanos que a comunidade herdou dos negros escravizados, e que teria influenciado os primeiros sambistas cariocas no início do século 20. Paulo César Pinheiro e Clara Nunes haviam combinado que a cada disco, haveria uma música que homenagearia uma escola de samba carioca. No álbum anterior, Clara, de 1981, a escola de samba Portela (a preferida de Clara Nunes), foi homenageada com o samba “Portela Na Avenida”.

Depois de um samba forte e intenso, o ritmo desacelera com outro ijexá presente em Nação, “Afoxé Pra Logun”, de Nei Lopes. A música presta homenagem a Logunedé, orixá da caça e da pesca, filho de Oxum e Oxóssi.

Uma outra experiência que Clara Nunes vinha desenvolvendo e de maneira bem-sucedida foram as suas incursões em ritmos e temáticas nordestinas. “Cinto Cruzado” é um baião de Guinga e Paulo César Pinheiro, que fala da seca no sertão nordestino e da exploração desumana do trabalho do homem sertanejo pelo patrão. A canção faz uma crítica dura à real situação dos flagelados da seca, mas ao mesmo tempo, conserva uma beleza poética nos seus versos.

“Mãe África”, parceria de Sivuca e Paulo César Pinheiro, é uma curiosa fusão de baião com a musicalidade africana. A letra saúda a ancestralidade afro-brasileira, os povos negros que com sua cultura e religiosidade, ajudaram a compor a nação brasileira.

“Amor Perfeito” fecha Nação como o segundo momento romântico do álbum, uma parceria de Ivor Lancellotti e Paulo César Pinheiro. Clara canta acompanhada de um violão e de uma naipe de violinos apenas. Os versos são carregados de muita paixão e de um amor intenso pela pessoa amada. A canção parece ser uma declaração de amor de Paulo César Pinheiro à própria Clara Nunes, sua esposa. E logo ela, que fecha o álbum, o último que a cantora gravaria nesta vida. Não deixa de ser também uma canção de despedida, onde houve a necessidade, antes da partida de Clara, de ratificar o que um sentia pelo outro. E com certeza, a reciproca era verdadeira.

Aquele ano de 1982 se tornaria um dos mais movimentados na vida de Clara. Foi um dos mais movimentados não somente na vida da Clara artistas, mas também da Clara cidadã. Desde o golpe que instalou uma ditadura militar no Brasil, em 1964, o povo brasileiro voltou a votar para governador, em 1982. Isso motivou Clara Nunes e outros artistas a fazerem campanha para candidatos a governador que se opunham à ditadura como Leonel Brizola, no Rio de Janeir, e Pedro Simon, no Rio Grande do Sul. Clara mostrava-se não só uma grande artista, mas também uma pessoa muito bem articulada politicamente.

Mas a sua vida profissional prosseguia. Entre maio e junho de 1982, gravou o álbum Nação. Depois, foi participar de um festival de música latino-americano na Alemanha, ao lado de Sivuca e Elba Ramalho. Logo após o lançamento de Nação, por volta de agosto de 1982, Clara Nunes, acompanhada do Conjunto Nosso Samba, partiram para uma turnê no Japão, onde se apresentaram em várias cidades e gravaram um programa especial para a TV NHK.

De volta ao Brasil, em setembro, Clara fez um show de lançamento do álbum Nação para convidados, na boate 150 Night, do Maksoud Plaza Hotel, em São Paulo.

Em novembro de 1982, uma semana após as eleições, Clara Nunes integra uma comitiva de artistas brasileiros da qual faziam parte Chico Buarque, Djavan, João Bosco, MPB-4 e João do Vale, que partiu em viagem para Cuba, onde participaram do Festival de La Nueva Canción, em Varadero.

Clara Nunes sendo entrevistada na TV NHK, no Japão, em agosto de 1982.

Ao retornar ao Brasil, Clara via o álbum Nação muito bem nas paradas de discos mais vendidos. O álbum atingia a marca de 600 mil cópias vendidas. “Ijexá”, “Serrinha” e a faixa-título eram as faixas do álbum mais tocadas nas emissoras de rádio, e ganharam videoclipes exibidos no Fantástico, da TV Globo.

Depois de um ano intenso de muito trabalho, turnês, gravação de disco, aparições em rádio e TV, Clara e o seu marido, Paulo César Pinheiro, decidiram fazer uma pausa no fim do ano. O casal passou o Natal e os festejos de Ano-Novo em Caetanópolis, em Minas Gerais, terra natal de Clara Nunes, junto aos familiares dela. Durante a estadia em Caetanópolis, Clara Nunes visitou todos os familiares, até mesmo parentes e amigos mais distantes que ela não via há anos.

Naquela ocasião, o marido já conversava com Clara sobre os planos para o próximo álbum. Discutiam sobre o repertório, audição de fitas de novos compositores e gravações. No entanto, a insistência da cantora em rever parentes e rever lugares da época de sua infância, pareciam ser sinais de despedida de Clara, que o marido compositor só teria consciência tempos mais tarde. A cantora teria confessado ao marido que ela não veria mais aquelas pessoas e que o novo ano que se iniciava, seria o último da vida dela. Ao retornarem de viagem para o Rio de Janeiro, Clara Nunes comunicou ao marido que havia tomado uma decisão: iria fazer uma cirurgia de varizes.

Em 5 de março de 1983, Clara Nunes submeteu-se a uma cirurgia de varizes na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro. Durante a cirurgia, a cantora teve uma reação alérgica a um dos componentes da anestesia, e entra em coma, permanecendo nesse estado por 28 dias na CTI (Centro de Tratamento Intensivo) da clínica. Nas semanas seguintes, imprensa e fãs permaneceram na frente da clínica em busca de notícias. Não faltaram boatos dos mais diversos para justificar os motivos da internação da cantora na clínica: inseminação artificial, tentativa de suicídio, overdose de drogas, surra do marido e até mesmo aborto, o que nesse caso seria impossível pelo fato de Clara ter feito uma histerectomia em 1979. A irmã de Clara, Maria Gonçalves Pereira, e Paulo César Pinheiro, marido de Clara, tentaram o possível para que aquela situação não se tornasse um “circo”.

Após 28 dias de agonia, Clara Nunes faleceu em 2 de abril de 1983, vítima de uma parada cardíaca, aos 40 anos. Os médicos já haviam alertado ao marido e à família de Clara Nunes que se a cantora sobrevivesse, teria sequelas graves devido à falta de oxigenação no cérebro motivado pela reação alérgica. O corpo de Clara Nunes foi velado na quadra da Portela, no Rio de Janeiro, escola de samba da qual a cantora tinha forte afeição. Mais de 50 mil pessoas foram ao velório. O corpo da cantora mineira foi sepultado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, que contou com a presença de familiares, amigos e milhares de fãs. Seu túmulo não só é visitado por fãs, mas também por religiosos do Candomblé e da Umbanda, que costumam fazer cerimônias e deixar oferendas em memória da Clara Nunes.

E se a cirurgia tivesse transcorrido bem e Clara fosse liberada sã e salva da clínica, qual rumo a música dela teria tomado? A pergunta é inevitável para fãs e críticos musicais, e até mesmo para quem não é fã da cantora, mas reconhece a relevância de Clara Nunes para a música brasileira. Talvez as respostas e algumas pistas possam ser encontradas no próprio Nação, último álbum da cantora de Clara. Certamente, ela apostaria ainda mais nas experiências com a música nordestina. Estreitaria laços com artistas nordestinos que estavam em ascensão como Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Elba Ramalho, por exemplo. Continuaria trilhando nesse seguimento, mas ao mesmo tempo tendo o cuidado com qualidade do repertório, não tendendo para forró popularesco.

Numa outra frente, como já era apontado por Nação, Clara estaria se aproximando ainda mais da música da Bahia por causa das incursões que ela vinha fazendo no ijexá. Muito provavelmente, Clara Nunes teria gravado o ijexá “É d’Oxum”, dos baianos Gerônimo e Vevé Calazans, gravada pela primeira vez pelo MPB-4 especialmente para a trilha sonora da minissérie Tenda dos Milagres, da TV Globo, em 1985, exatos dois anos após a morte da cantora. E com o novo momento que a música baiana vivenciaria a partir de meados dos anos 1980, com o surgimento da axé music e ascensão dos blocos afros de Salvador, não seria surpresa uma parceria de Clara Nunes com blocos afros soteropolitanos como Olodum ou Ilê Aiyê.

Mas tudo isso são só especulações, um saudável exercício de futurologismo que infelizmente nunca poderá acontecer. Resta-nos apreciar a fantástica voz de Clara Nunes nas canções que ela gravou, e contemplar a sua dança e o seu carisma nos videoclipes e programas de TV que ela participou em vida.  

Faixas

Lado A
  1. “Nação” (João Bosco - Aldir Blanc - Paulo Emílio)
  2. “Menino Velho” (Romildo Bastos - Toninho Nascimento)
  3. “Ijexá” (Edil Pacheco)
  4. “Vapor De São Francisco” (Romildo Bastos - Toninho Nascimento)
  5. “Novo Amor” (Chico Buarque)
Lado B 
  1. “Serrinha” (Mauro Duarte - Paulo César Pinheiro)
  2. “Afoxé Pra Logun” (Nei Lopes)
  3. “Cinto Cruzado” (Guinga - Paulo César Pinheiro)
  4. “Mãe África” (Sivuca - Paulo César Pinheiro)
  5. “Amor Perfeito” (Ivor Lancellotti - Paulo César Pinheiro)

Referências:
Clara Nunes: Guerreira da utopia – Vagner Fernandes, 2019, Editora Agir
Wikipedia



Ouça na íntegra o álbum Nação


“Nação” (videoclipe para o 
"Fantástico", TV Globo, 1982)


“Ijexá” (videoclipe para o 
"Fantástico", TV Globo, 1982)



Clara Nunes e banda cantando "Fuzuê", na
TV NHK, no Japão, em programa especial 
dedicado a ela, agosto de 1982 



Comentários

  1. Gostaria de retificar que em todos os discos da Clara Nunes, a partir do disco de 1971, tiveram essa miscelânia de ritmos brasileiros. Brasil Mestiço se tornou um marco pois coincide com o show homônimo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Na verdade, Acac 2001, o disco "Clara Nunes"(1971) representou a mudança de orientação musical de Clara Nunes, focando no samba e nos ritmos afro-brasileiros "orbitam" o estilo como o choro e jongo, e a adoção de referências do candomblé e da umbanda. Até então, Clara Nunes tentou vários estilos (de bolero e marchinhas de Carnaval ao pop estilo jovem Guarda), sem êxito algum.

      A mudança de orientação musical de Clara para o samba foi uma ideia que partiu da cabeça do produtor dela, Adelzon Alves, e que deu certo, A partir de meados dos anos 1970, ela foi ampliando aos pouco o seu leque musical (sem no entanto sair do foco do samba), adicionando ao seu repertório forró e o ijexá. No link abaixo, você pode conferir uma postagem deste blog de agosto deste ano, com dez discos essenciais de Clara Nunes, em homenagem aos 80 anos da cantora. Você pode lá ter uma ideia da linha evolutiva musical de Clara, que começou "patinando" em vários estilos sem grande sucesso até se consagrar no samba. Obrigado pelo seu comentário, Acac 2001.

      https://discosessenciais.blogspot.com/2022/08/10-discos-essenciais-clara-nunes.html

      Excluir

Postar um comentário