“Marcus Garvey” (Island, 1975), Burning Spear


Nascido em 1945 na cidade de Saint Ann’s Bay, capital da paróquia de Saint Ann, na Jamaica, Winston Rodney foi influenciado por duas figuras que por coincidência ou não, eram ilustres conterrâneas suas: o ativista Marcus Garvey (1887-1940) e o cantor Bob Marley (1945-1981). Ambos nasceram na paróquia de Saint Ann assim como Rodney, e se tornariam grandes referências na sua maneira de pensar e de encarar o mundo.

Já convertido ao rastafarianismo, Rodney começou a sua carreira artística em 1969, quando formou com o vocalista e baixista Rupert Wellington, uma dupla vocal, mas que pouco tempo depois se tornaria um trio com a entrada de Delroy Hines. Rodney fazia o vocal principal enquanto que Wellington e Delroy assumiram os vocais de apoio.

Naquele momento, Rodney assumiu como seu nome artístico a alcunha Burning Spear (“Lança Ardente” em inglês), inspirado em uma das mais importantes comendas do Quênia, Order Of The Burning Spear (Ordem da Lança Ardente). Essa comenda foi criada em homenagem a Jomo Kenyatta (1894-1978), que na época em que fora primeiro-ministro do Quênia, foi de suma importância na independência daquele país em 1963, quando deixou de ser colônia da Grã-Bretanha. Após a independência, Kenyatta tornou-se o primeiro presidente do Quênia, entre 1964 e 1978. No dialeto da etnia kikuyu, do Quênia, Jomo quer dizer justamente “lança ardente” ou “lança flamejante”. Burning Spear foi também como acabou sendo chamado o trio integrado por Rodney, Wellington e Delroy.

Da esquerda para a direita: Delroy Hines, Winston Rodney (Burning Spear) e Ruppert Wellington.

Ainda em 1969, por sugestão de Bob Marley, o trio foi fazer um teste num dos mais importantes selos da Jamaica naquela época, o Studio One, de propriedade do produtor Clement Dodd. O trio foi aprovado e logo gravou o primeiro single, “Door Peep”, lançado em 1969.

Dali em diante, sucederam-se vários singles até o lançamento do primeiro álbum em 1973, Studio One Presents Burning Spear. Em 1974, sai o segundo álbum, Rocking Time. Apesar da fama que vinha construindo com os dois primeiros álbuns na Jamaica, divergências levaram o trio a romper com Clement Dodd.

Após deixar o selo Studio One, o trio procurou o produtor Lawrence Lindo, mais conhecido como Jack Ruby, dono de sistema de som baseado na cidade de Ocho Rios, na paróquia de Saint Ann, na Jamaica. Até aquele momento, Ruby era o único produtor de discos de reggae que trabalhava fora de Kingston.

No entanto, Ruby teve que se dirigir a Kingston para produzir novos singles de Burning Spear e que resultariam no terceiro álbum do trio. As sessões de gravação ocorreram no Randy’s Studio, um dos estúdios de gravação mais requisitados pela nata do reggae naquela época. Para acompanhar o trio nas gravações, Ruby recrutou uma verdadeira seleção estelar de músicos da cena de reggae jamaicana daquele momento, alguns deles oriundos da banda The Soul Syndicate e outros dos Wailers, a banda de apoio de ninguém menos que Bob Marley. A junção dos músicos resultou na banda batizada por Ruby como The Black Disciples. Entre os músicos que tocaram nas sessões de gravação estavam gente como os baixistas Robbie Shakespeare e Aston “Family Man” Barrett, o guitarrista Earl “Chinna" Smith e os tecladistas Earl “Wya” Lindo, Bernard “Touter” Harvey e Tyrone Downie, o baterista Leroy Wallace entre outros.

Lawrence Lindo, também conhecido como Jack Ruby, produtor do álbum Marcus Garvey.
O lançamento do novo álbum foi antecedido pelo lançamento de dois singles, “Marcus Garvey” e “Slavery Days”. Os dois singles alcançaram um grande sucesso perante o público jamaicano, o que despertou o interesse da Island Records, gravadora de Chris Blackwell, empresário inglês que passou a infância na Jamaica e que se tornara responsável por levar para a Inglaterra e mercado internacional as novidades da música jamaicana. Bob Marley se tornara a grande estrela da Island Records e o grande propagador do reggae mundialmente.

Para o lançamento do álbum no mercado internacional, Blackwell teria mandado fazer algumas alterações na mixagem nas fitas originais para tornar o álbum mais comercial. A ideia era tornar o álbum mais “agradável”, menos “rústico” aos ouvidos europeus. Essa estratégia teria ocorrido com o álbum Catch A Fire, de Bob Marley & The Wailers, e o resultado foi um grande sucesso comercial. Contudo, a ideia não foi muito bem “digerida” por Winston Rodney que não gostou de ver o trabalho do trio já finalizado mexido à sua revelia. Apesar da insatisfação de Rodney com a atitude da Island Records, o álbum, intitulado Marcus Garvey, foi lançado em 12 de dezembro de 1976.

O título do álbum faz referência ao jornalista e ativista jamaicano Marcus Garvey que dedicou a sua vida em defesa dos direitos do povo negro, não só o da Jamaica, seu país natal, como também dos Estados Unidos, da África, e de qualquer parte do mundo. Foi um profundo pesquisador da cultura africana. Mesmo após a sua morte, em 1940, o seu pensamento permaneceu exercendo influência nas gerações seguintes de jamaicanos, sobretudo, nos artistas de reggae da Jamaica que começaram a despontar a partir dos anos 1960 como Burning Spear.

Marcus Garvey, ativista jamaincano defensor dos direitos e da cultura do povo negro: referência para Burning Spear e
várias gerações de artistas de reggae e ativistas da causa negra.

A faixa que dá nome ao álbum é quem abre o disco, e que foi lançada antes do álbum como single. É um reggae de ritmo rápido e dançante cuja letra trata sobre fome e pobreza na Jamaica, e cita Marcus Garvey e a sua mensagem de luta e esperança para o povo negro.

“Slavery Days”, assim como “Marcus Garvey”, a faixa anterior, havia também sido lançada como single anteriormente. O refrão pergunta ao ouvinte se ele lembra dos dias de escravidão e de sofrimento durante séculos de colonização europeia nas Américas. Enquanto Winston Rodney canta os versos da música, Rupert Wellington e Delroy Hines a todo momento repetem o “Do you remember the days of slav'ry?” (“Você se lembra dos dias de escravidão?”).

“The Invasion” trata da diáspora africana, enquanto que “Live Good” traz no seu ritmo lento a presença inusitada de uma flauta executada por Carlton Samuels, um instrumento pouco comum no universo do reggae. 

“Give Me” Burning Spear clama por liberdade, algo que seus antepassados escravizados não tinham na época da Jamaica colonial. Se na Jamaica contemporânea dos anos 1970, o povo já era livre, o clamor desta vez era por justiça social, em meio a tanta violência e miséria econômica.   

Em “Old Marcus Garvey”, Burning Spear volta a falar do líder negro jamaicano e questiona os motivos de Garvey ter sido esquecido em sua terra de origem. “Tradition” lembra da presença milenar da cultura negra no mundo, enquanto que “Jordan River” mostra a veia espiritual de Burning Spear ao afirmar que só passarão pelo Rio Jordão os que têm fé.

“Red, Gold & Green” é uma homenagem sutil à Etiópia e a Haile Selassie (1892-1975), último imperador da Etiópia, considerado pelos rastafáris o “Cristo Vivo”, e “reencarnação de Jah”. O título da música é uma clara alusão às cores da bandeira etíope. No entanto, na letra, a expressão ites significa vermelho na linguagem rastafári: “Ites, green and gold, it’s the rainbow” (“Ites, verde e ouro, é o arco-íris”). O verso “The lion, the lion, crown the kingIn Addis Ababba” (“O leão, o leão, coroa o rei em Addis Ababba), traz claras alusões ao Leão de Judá, símbolo muito cultuado pelos rastafáris, e o nome da capital etíope.

A faixa que encerra o álbum é a ecológica “Resting Place”, em que Burning Place procura uma árvore sombreada para descansar, mas tudo que encontra é poluição.

O imperador etíope Haile Selassie (1892-1975) e a bandeira imperial etíope que esteve em vigor entre 1941 e 1974:
dois símbolos que fazem parte do imaginário rastafári.

Com um repertório que mistura temas espirituais com engajamento político e étnico, o álbum Marcus Garvey agradou ao público. Se os temas abordados já estavam presentes nos álbuns anteriores, Studio One Presents Burning Spear (1973) e Rocking Time (1974), o que diferenciou o álbum Marcus Garvey dos seus antecessores foram as boas canções, e sobretudo, a qualidade da produção do álbum. O trabalho do produtor Jack Ruby e os músicos que acompanharam as gravações, deixaram a sonoridade de Burning Spear mais robusta, mais encorpada, comparada aos de Studio One Presents Burning Spear e Rocking Time.

Marcus Garvey representou a consagração de Winston Rodney como representante do reggae fora da Jamaica, principalmente no Reino Unido. O sucesso de Marcus Garvey resultou no lançamento em abril de 1976, do álbum Garvey’s Ghost, que trouxe versões dub das músicas presentes no álbum Marcus Garvey. Em agosto de 1976, sai o quarto álbum, Man In The Hills, produzido por Jack Ruby, e que trouxe uma regravação de “Door Peep”, música que fez parte do primeiro compacto de Burning Spear lançado em 1969 pelo selo Studio One. 

Winston Rodney, o "Burning Spear", em 2016.

Em meio ao sucesso, no final de 1976, Rodney separa-se de Rupert Wellington e Delroy Hines, e segue sua carreira sozinho como Burning Spear. Seu primeiro álbum sem os antigos parceiros foi Dry & Heavy, de 1977, e que foi também o primeiro produzido pelo próprio Rodney. O lançamento do álbum foi sucedido por uma turnê pelo Reino Unido, que contou com a Aswad como banda de apoio. Um show no Rainbow Theatre, em Londres, foi gravado ao vivo em outubro de 1977, e resultou no álbum Live, lançado no mesmo ano.

Dali em diante, Rodney seguiu a sua trajetória como astro do reggae, mas mantendo as suas convicções ideológicas. Por causa delas, travou vários conflitos com executivos de gravadoras, brigando pelos seus direitos como compositor e intérprete. Rodney chegou a criar o seu próprio selo para lançar os seus álbuns, porém sem nenhum deles conquistar o mesmo prestígio e relevância do álbum Marcus Garvey.

Faixas
  1. "Marcus Garvey"
  2. "Slavery Days"
  3. "The Invasion" (W. Rodney - C. Paisley - P. Fullwood)
  4. "Live Good" (Marcus Rodney, Mackba Rodney, Winston Rodney)
  5. "Give Me" (Winston Rodney)
  6. "Old Marcus Garvey"
  7. "Tradition" (Delroy Hines - Rupert Willington - Winston Rodney)
  8. "Jordan River" (W. Rodney - M. Lawrence - P. Fullwood)
  9. "Red, Gold & Green" (A. Folkes - W. Rodney - P. Fullwood)
  10. "Resting Place" (Winston Rodney)

Todas as são de autoria de Winston Rodney e Phillip Fullwood, exceto as indicadas.

Burning Spear: Winston Rodney (vocal principal), Rupert Willington (vocal de apoio) e Delroy Hines (vocal de apoio).



"Marcus Garvey"


"Slavery Days"



"The Invasion"



"Live Good"



"Give Me"



"Old Marcus Garvey"



"Tradition"




"Jordan River"



"Red, Golden And Green"



"Resting Place"



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