“Cheap Thrills” (1968, Columbia), Big Brother & The Holding Company



Por Sidney Falcão

Em 1965, a cena musical da cidade de San Francisco começava a fervilhar com o surgimento de bandas que ajudariam a dar um novo sopro de criatividade no rock norte-americano como a Grateful Dead, a Jefferson Airplane, a Quicksilver Messenger Service entre outras tantas. Boa parte dessas novas bandas surgiam dentro do espírito libertário do movimento hippie que estava nascendo, tendo a Universidade da Califórnia, localizada na vizinha cidade de Berkeley, no lado leste da Baía de San Francisco, como “berço” daquele movimento que se espalharia pelo resto do mundo, pregando a paz e o amor, a vida comunitária, o amor livre e o uso de drogas para a “expansão da consciência”. Em pouco tempo, milhares de jovens cabeludos se dirigiram para San Francisco fazendo daquela cidade uma “Meca hippie”.

Foi nesse cenário em plena ebulição que naquele mesmo ano de 1965 foi formada em San Francisco uma banda que se tornaria outra grande contribuição daquela cidade para o rock mundial: a Big Brother & The Holding Company. O grupo surgiu a partir do encontro do baixista e guitarrista Peter Albin e do também guitarrista Sam Andrew (1941-2015). Em pouco tempo já estavam ensaiando juntos. Aos dois, juntou-se outro guitarrista, James Gurley (1939-2009), o que fez Albin concentrar-se na função de baixista. No entanto, vez ou outra, Albin tocava guitarra quando era necessário. Com a entrada do baterista Chuck Jones, a banda é batizada de Big Brother & The Holding Company. O então quarteto começa a fazer o circuito alternativo de rock de San Francisco, e com mais frequência a tocar nas jam sessions promovidas por Chet Helms (1942-2005) num casarão antigo na Haight-Ashbury, bairro que era o ponto de encontro dos hippies que se dirigiam para San Francisco. Além de promover as jam sessions, Helms se tornara agente da banda.

San Francisco em 1965, cidade que se tonaria em poucoi tempo 
"Meca hippie" nos Estados Unidos.

A Big Brother & The Holding Company faz a sua primeira grande apresentação, em janeiro de 1966, no Trips Festival, em San Francisco, evento que promoveu música, dança e experimentações de LSD para o público, em sua maioria formada por hippies. Em março, Chuck Jones é substituído por Dave Getz, um jovem baterista com experiência em jazz. Pouco depois, a Big Brother & The Holding Company se torna atração fixa da Avalon Ballroom, em San Francisco, uma casa de shows que estava sob a direção de Chet Helms.

Mesmo com várias apresentações no currículo, a Big Brother & The Holding Company precisava de um vocalista. Vários testes com os mais diversos vocalistas foram feitos, mas nenhum atendia às expectativas da banda. Foi então que Helms teve a ideia de trazer uma velha amiga do Texas para ocupar o posto de vocalista da Big Brother & The Holding Company. Tratava-se de Janis Joplin, uma garota texana amante do blues que chegou a passar um tempo em San Francisco, entre 1961 e 1965, mas havia retornado para Port Arthur, Texas, cidade onde morava a sua família para se recuperar do vício em drogas. De volta a San Francisco, Janis estreou como vocalista da Big Brother & The Holding Company em junho de 1966 num show no Avalon Ballroom.

Big Brother & The Holding Company (da esquerda para a direita): Janis Joplin,
Dave Getz, James Gurley (ao centro), Peter Albin e Sam Andrew.

Três meses depois da estreia de Janis como vocal da Big Brother & The Holding Company, a banda assina contrato com o selo Mainstream Records. Em dezembro, a banda foi para Los Angeles gravar o seu primeiro álbum, sob a produção de Bob Shad. No primeiro semestre de 1967 saem os primeiros singles, “Bye Bye Baby”, “Down On Me” (43º lugar na US Hot 100) e “Blindman” (110º lugar no US Hot 100). As baixas vendas dos singles fizeram a Mainstream adiar o lançamento do primeiro álbum da banda temendo um fracasso ainda maior. 

Mas as coisas iriam mudar a favor da Big Brother & The Holding Company em junho quando a banda participa do Monterey Pop Festival, em Monterey, Califórnia, nos Estados Unidos. Naquela edição do festival, dentre as atrações, estavam The Jimi Hendrix Experience (uma das revelações do festival), The Who, Otis Redding, Simon & Garfunkel entre outros artistas, e que reuniu um público de cerca de 200 mil pessoas.

A Big Brother & The Holding Company fez uma apresentação memorável onde o grande destaque foi Janis Joplin que fez uma performance fantástica, chamando a atenção do público e da crítica que ficaram impressionados com aquela garota branca que cantava blues e soul music como uma negra. A voz rouca e a forma intensa na maneira de Janis Joplin cantar, tinha como referência Ottis Redding, uma das maiores influências musicais da vocalista, ao lado de Bessie Smith (1894-1937) e Big Mama Thornton (1926-1984). 

Big Brother & The Holding Company durante a sua apresentação antológica
no Monterey Pop Festival, em junho de 1967. 

O sucesso da Big Brother & The Holding Company no festival convenceu a Mainstream Records a finalmente lançar o primeiro álbum da banda que já estava pronto há algum tempo, esperando o momento que o selo julgasse conveniente lançar. Em agosto, o primeiro e homônimo álbum da Big Brother & The Holding Company foi lançado, e alcançou 60º lugar. A principal faixa do álbum foi “Down On Me”, que já havia sido lançada como single meses antes.

A apresentação da Big Brother & The Holding Company no Monterey Pop Festival ainda estava na memória de muita gente, inclusive na de uma grande gravadora, a Columbia Records. Mal a Mainstream havia lançado o primeiro álbum da Big Brother & The Holding Company, três meses depois a Columbia fez uma proposta para ter aquela banda no seu cast. Alguns entraves acabaram atrasando o acerto da banda com a Columbia que acabou se concretizando. Naquele momento, Albert Grossman (1926-1986), agente de Bob Dylan e do trio Peter, Paul & Mary, era o novo agente da Big Brother & The Holding Company.

Para a gravação do segundo álbum da Big Brother & The Holding Company, o primeiro pela Columbia, a gravadora tinha em mente o quinteto gravar um álbum ao vivo para captar a energia da banda no palco. Provavelmente, a Columbia queria repetir num álbum ao vivo a mesma performance antológica que a Big Brother & The Holding Company fez no Monterey Pop Festival. Para fazer esse registro ao vivo, a banda fez uma excursão pelos Estados Unidos para gravar material ao vivo para o disco. O show no The Grande Ballroom, em Detroit, foi gravado, mas a qualidade do registro estava abaixo do que a gravadora e a banda esperavam. Sob a produção de John Simon, o álbum acabou sendo gravado ao vivo no estúdio, e na mixagem, foram inseridos palmas e assobios. Apenas as faixas “Combination Of The Two”, “I Need A Man To Love” e “Ball And Chain”, são as únicas gravadas ao vivo num show de verdade. 

Capa do primeiro álbum da Big Brother & The Holding Company.


A princípio, a banda tinha como ideia a para a capa uma foto com todos os integrantes nus numa cama, mas a gravadora vetou. Pensou-se na fotografia de Janis para a capa. Porém, a própria Janis deu uma sugestão melhor e mais feliz: trazer para a frente a ilustração de Robert Crumb que havia sido feita para a contracapa do álbum. Inclusive, a ilustração trazia o título das músicas em forma de histórias-em-quadrinhos, o que fica evidente que a arte de Crumb foi pensada como contracapa. Contudo, a gravadora gostou da sugestão de Janis e aceitou a ideia da vocalista em colocar a ilustração irreverente e transgressora de Crumb na capa do álbum.

Juntamente com desenhistas como Gilbert Shelton e Spain Rodriguez, Robert Crumb foi um dos ícones do movimento underground que revolucionou as histórias-em-quadrinhos nos Estados Unidos nos anos 1960, e que estava em total sintonia com a contracultura que estava em voga naquele momento.

O título do álbum seria Sex, Dope And Cheap Thrills (em tradução livre: Sexo, Droga E Emoções Baratas), mas a gravadora vetou o “Sex” e “Dope”, e liberou apenas “Cheap Thrills”.

E foi com o título de Cheap Thrills e a arte de Robert Crumb estampada na capa que o segundo álbum da Big Brother & The Holding Company chegou às lojas em 12 de agosto de 1968. Com um repertório que reúne sete faixas, três delas regravações de músicas de outros artistas, Cheap Thrills traz a Big Brother & The Holding Company praticando uma sonoridade crua, calcada numa mistura de rock, blues e psicodelia, e com o mais do que o merecido destaque para os vocais fantásticos de Janis Joplin.

“Combination Of The Two” é a faixa que abre Cheap Thrills. Começa com a voz de Bill Graham (1931-1991), proprietário do Fillmore Auditorium, onde a música foi gravada ao vivo, anunciando para o público a Big Brother & The Holding Company que é recebida sob aplausos. Sam Andrew e Janis Joplin dividem os vocais num rock pulsante, cru e com solos de guitarra vigorosos e cheios de distorção. 

Na faixa seguinte, “I Need A Man To Love”, Janis implora com o seu vocal rouco e desesperado por um homem para amar. Ela canta com total entrega, enquanto os seus colegas de banda fazem os vocais de fundo. É possível que a canção, composta por Janis em parceria com Sam, seja autobiográfica, e diga muito a respeito da carência afetiva dela.

Encontro de Janis Joplin e o cartunista Rober Crumb, na abertura do New Comix Show,
na Phoenix Gallery, em Berkeley, Califórnia, em 1969.

“Summertime” é uma das faixas de destaque do álbum, e evi
dentemente, da carreira de Janis Joplin. A canção foi composta por George Gershwin, DuBose e Ira Gershwin em 1935 para a ópera Porgy And Bess. É uma das canções mais regravadas de todos os tempos e que já ganhou interpretações de gente do quilate de Billie Holiday, Sam Cooke e The Marcels. A música é uma canção de ninar em que uma mãe canta para o seu bebê que ele um dia crescerá, criará asas, e seguirá o seu próprio destino. Com a Big Brother & The Holding Company, “Summertime” ganhou uma versão blues, e traz Janis Joplin numa performance magnífica e que marcaria a sua carreira. Além de Janis, vale destacar os solos de guitarra cheios de distorção e crueza de Sam Andrew e James Gurley.

“Piece Of My Heart” fecha o lado A do álbum (na versão LP). Originalmente, ela foi gravada por Erma Franklin, irmã de Aretha Franklin (1942-2018), em 1967. No entanto, a música ganhou maior projeção com a versão da Big Brother & The Holding Company, cujo single vendeu 500 mil cópias e foi 1º lugar na parada de singles da Billboard. A letra trata as dores de amor de uma mulher totalmente apaixonada por um homem. Mais uma vez, Janis mostra a sua habilidade de intérprete neste álbum, soltando o seu vozeirão rouco que parece sair das suas entranhas mais profundas.

Abrindo o lado B (versão LP), “Turtle Blues”, um típico blues de raiz. Janis canta acompanhada apenas pelo produtor John Simon ao piano e por Peter Albin ao violão. A música tem todo um clima de bar, com direito a som de copo quebrando e gente conversando, enquanto Janis canta como se estivesse possuída pelo espírito de alguma cantora negra de blues do passado.

“Oh, Sweet Mary” traz o guitarrista Sam Andrew fazendo o vocal principal. Dave Getz conduz a bateria num ritmo frenético e inquieto. O baixista Peter Albin mostra a sua habilidade como guitarrista com um solo longo no meio da música. Em determinados trechos da música, é possível ouvir um som distante de cítara indiana.

Fechando o álbum com “chave de ouro”, o blues “Ball And Chain”. A canção foi composta Big Mama Thornton (1926-1984) e gravada por ela em 1968, pouco antes da Big Brother & The Holding Company. Um som de bateria dá início à música que é logo sucedido por uma breve pausa. Em seguida entram solos perturbadores e crus de guitarra, enquanto a bateria conduz o andamento lento da música. Numa performance simplesmente fantástica, Janis alterna calma e agressividade na maneira de cantar, e mostra o quanto ela era uma intérprete incrível. A letra fala do sofrimento de uma mulher que sente que seu amor por um homem que quer abandoná-la, seria como uma bola e uma corrente presa a ela puxando-a para baixo.

Big Mama Thornton, autora do blues "Ball An Chain", regravado pela
 Big Brother & The Holding Company.

Cheap Thrills foi aclamado pelo público e pela crítica. O álbum alcançou o 1º lugar na parada de álbuns da Billboard 200, e até o final de 1968, atingiu a marca de 1 milhão de cópias vendidas, o que garantiu ao Big Brother & The Holding Company o seu primeiro Disco de Ouro. O single de “Piece Of My Heart” foi 12º lugar da parada de singles da Billboard Hot 100.

Porém, enquanto Cheap Thrills fazia um ótimo desempenho comercial, em setembro, após um show em San Francisco, Janis Joplin anunciava que estava deixando a Big Brother & The Holding Company. Ela ainda cumpriu uma turnê com a banda que já estava agendada pelos Estados Unidos entre outubro e novembro de 1968. Em 1º de dezembro daquele ano, Janis fez a sua última apresentação com a Big Brother & The Holding Company, em San Francisco. Ela deixou a banda para seguir carreira solo. O guitarrista Sam Andrew também saiu da Big Brother & The Holding Company para integrar a banda de apoio da carreira solo de Janis, a Kosmic Blues Band. No final de dezembro, em Memphis, Janis fez a sua primeira apresentação em carreira solo.

Com a saída de Janis e Sam, a banda chegou ao fim no auge da fama com Cheap Thrills. Peter Albin e Dave Getz entraram na banda Country Joe & The Fish, em 1969. No mesmo ano, o guitarrista James Gurley se viu envolvido num pesadelo: foi acusado de ter assassinado a sua esposa, Nancy Gurley, por supostamente ter injetado heroína na veia dela. James passou cerca de um ano e meio tentando provar a sua inocência, e conseguiu.

Capa da edição especial de 50 anos de Cheap Thrills, lançado em 2018, trouxe uma
fotografia da banda e o título original do álbum vetado pela gravadora.

Por volta de 1970, a Big Brother & The Holding Company voltou à ativa com Sam Andrew, Peter Albin, Dave Getz e James Gurley, e mais dois integrantes novos, Nick Gravenites (vocais) e David Schallock (guitarra e vocais de apoio). A banda lançou mais dois álbuns, Be A Brother (1970) e How Hard It Is (1971), mas sem grande repercussão. A banda acabou novamente em 1972.  Em 1987, a Big Brother & The Holding Company fez um novo retorno e desde então prossegue na ativa, tendo apenas Peter Albin como membro original.

Em 2018, para celebrar os 50 anos de Cheap Thrills, a Columbia/Legacy Recordings (uma divisão da Sony Music Entertainment), lançou uma edição especial com o título original Sex, Dope & Cheap Thrills que fora vetado pela gravadora em 1968. A edição especial de 50 anos foi lançada em três formatos: CD duplo (30 faixas) e LP duplo (16 faixas), trazendo faixas em gravações originais restauradas, faixas raras e versões alternativas.

Faixas

Lado A
  1. "Combination Of The Two" (Sam Andrew)
  2. "I Need A Man To Love" (Sam Andrew - Janis Joplin)
  3. "Summertime" (George Gershwin - Ira Gershwin - DuBose Heyward)
  4. "Piece Of My Heart" (Bert Berns - Jerry Ragovoy)   
Lado B
  1. "Turtle Blues" (Janis Joplin) 
  2. "Oh, Sweet Mary" (Peter Albin – Andrew - David Getz - James Gurley - Janis Joplin)
  3. "Ball And Chain" (Big Mama Thornton)


Big Brother & The Holding Company: Janis Joplin  (vocal), Sam Andrew (guitarra e baixo; vocais em "Combination Of The Two" e "Oh Sweet Mary"), James Gurley (guitarra), Peter Albin (baixo e guitarra) e Dave Getz (bateria).


Ouça na íntegra o álbum Cheap Thrills

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