“Chaos A.D.” (Roadrunner, 1993), Sepultura


No começo dos anos 1990, o Sepultura gozava de grande prestígio no cenário mundial do heavy metal. A banda mineira era uma das maiores sensações do heavy metal internacional naquele momento, vindo de um lugar como o Brasil, onde o mundo acreditava que só tinha floresta, samba e carnaval, mas que pegou todos de surpresa ao trazer um som brutal, pesado e inovador. O elogiado álbum Arise, lançado em 1991, vendeu mais de 1 milhão de cópias e rendeu para a banda a sua mais longa turnê que durou pouco mais de um ano, percorreu 39 países e um total de 220 shows.

Ainda em 1991, o Sepultura a turnê de Arise e começou a preparar repertório para um novo álbum. Para a produção, os membros do Sepultura pensaram em vários produtores renomados, mas acabou escolhendo uma figura que já havia trabalho com ele antes: Andy Wallace. Foi ele quem fez o processo de mixagem de Arise. Seu papel desta vez era encarar a produção de um novo álbum para a banda brasileira.

Andy Wallace, produtor do álbum Chaos A.D

Com a intenção de fugir dos assédios de imprensa e fãs, e até mesmo a tentação de cair na farra, Wallace sugeriu que a banda gravasse o novo álbum na Rockfield Studios, uma tranquila mansão em Monmouthshire, País de Gales, onde lá já gravaram alguns dos grandes astros do rock como Black Sabbath, Rush, Queen e Motörhead. O sossego e tranquilidade manteriam a banda mineira focada no novo trabalho, longe das badalações.

Para o repertório do novo álbum, os membros da banda reuniram composições próprias e alguns covers, como “The Hunt”, do New Model Army, “Polícia”, dos Titãs, “Crucificados Pelo Sistema”, dos Ratos de Porão, e “Inhuman Nature”, da Final Conflit que foram gravados, mas que nem todos entrariam no álbum.

Curiosamente, a única faixa que não foi gravada na Rockfield Studios foi “Kaiowas”, gravada ao vivo nas ruínas do castelo de Chepstow, em Monmouthshire, construído no século XI. A ideia surgiu quando a banda e a produção estavam a caminho dos estúdios da Rockfield e avistaram o castelo. A música foi gravada nas ruínas do castelo bem ao estilo “Pink Floyd live in Pompeii”: ao vivo, sem público; só músicos, produção, e sabe-se lá, as almas que devem circular aquele lugar. Tudo foi registrado em áudio e vídeo.

Castelo de Chepstow, em Monmouthshire, País de Gales: nas ruínas do castelo do século XI,
o Sepultura gravou a faixa "Kaiowas".

Lançado em 19 de outubro de 1993, Chaos A.D. é considerado um divisor de águas na carreira do Sepultura. Representou o afastamento da banda brasileira do thrash metal convencional para buscar uma sonoridade diferente, pessoal e inovadora. Em Chaos A.D., o Sepultura flerta com o punk rock e o hard-core, e incorpora percussão afro-baiana, uma ideia que partiu do vocalista e guitarrista Max Cavalera, tendo como referência o samba-reggae do Olodum. O resultado é diferente de tudo que se fazia de metal mundialmente naquele momento.

Abrindo o disco, “Refuse/Resist”, que começa com os batimentos cardíacos do filho do vocalista e guitarrista, Max Cavalera, que ainda estava em gestação. Segue-se um solo de percussão afro-baiana que dá a senha para a entrada da pancadaria sonora do Sepultura em seguida. “Refuse/Resist” trata de confrontos nas ruas entre manifestantes e policiais. O ritmo da música é alternado, variando entre o heavy metal e hardcore.

Inspirada nos conflitos sem fim entre palestinos e israelenses, “Territory” refere-se aos conflitos territoriais. A música ganhou um vídeo clipe que traz cenas com os integrantes da banda filmadas na região do Mar Morto, além de imagens do povo palestino, de soldados israelenses e do Muro das Lamentações, em Jerusalém.

“Slave New World” é uma crítica a todo tipo de censura e intolerância: “You censor what we breathe / Pre-judice with no belief” (“Você censura o que nós apenas sussurramos / Discrimina sem ter nenhuma convicção”). Em tempos atuais onde reinam o patrulhamento das ideias e a polarização dos debates políticos entre internautas nas redes sociais, a música parece que foi composta hoje.

Em “Amen”, o Sepultura trata da alienação da fé. A música foi inspirada na tragédia do Cerco de Waco, ocorrida em abril de 1993, no Texas, Estados Unidos, onde o líder da seita Monte Carmelo, David Koresh, liderou uma resistência contra um cerco policial. Koresh e alguns de seus seguidores, encurralados no templo da seita, preferiram provocar um incêndio no templo e morrerem do que se entregarem à polícia. Cerca de 76 pessoas morreram. “Amén” é um heavy metal que traz alguns trechos com cantos gregorianos.

A tragédia do Cerco do Waco inspirou a faixa "Amen", do Sepultura. 

A instrumental “Kaiowas” é a faixa que destoa de todo o álbum. Ela é toda acústica, foi a primeira experiência do Sepultura em gravar uma música nesse estilo. Numa entrevista à revista Bizz, em setembro de 1993, Max Cavalera disse que “Kaiowas” era uma mistura de Led Zeppelin (fase Led Zeppelin III), Sonic Youth e Olodum. A música seria o encontro da sonoridade acústica do Led Zeppelin em seu terceiro álbum, com o vigor do Sonic Youth e a força percussiva do Olodum. A introdução traz os violões de Max e Andreas, enquanto a bateria de Igor, segue num ritmo lento e percussivo. Na reta final, o Sepultura surpreende ao simular um baião com Andreas fazendo solos numa viola caipira. “Kaiowas” é uma homenagem do Sepultura a uma tribo indígena da Amazônia que preferiu cometer um suicídio coletivo como forma de protesto contra o governo que pretendia expulsar os indígenas da terra onde moravam há dezenas de gerações.

Na faixa “Propaganda”, o Sepultura alterna a velocidade da música, ora lenta, ora veloz. Bateria, baixo e guitarras parecem emitir uma rajada de tiros de metralhadora em dados momentos da faixa. Igor arrasa na bateria r mostra porque estava entre os melhores baterista do metal mundial naquele momento.

“Biotech Is Godzila” é uma contribuição do ex-vocalista do Dead Kennedys, Jello Biafra, para o álbum do Sepultura. Biafra compôs “Biotech Is Godzila” quando participou do fórum Rio 92, no Rio de Janeiro, em 1992. A letra faz duras críticas às organização do evento (que ao dos governantes, haviam escondido os mendigos dos olhos extrageiros que participaram do evento), aos grande laboratórios que usam a tecnologia para fins escusos, segundo a letra da música. A letra de “Biotech Is Godzila”  chega a insinuar que a AIDS foi criada em laboratório.

Riffs de guitarra simulam um sinal de alerta na introdução de “Nomad”, cuja letra faz referência as povos nativos, como os índios brasileiros e norte-americanos, que foram expulsos de suas terras subjugados pelos invasores europeus.

“We Who Are Not As Others” é uma faixa com apenas um verso que se repete. É uma faixa que serve mais para demonstrar as habilidades dos membros do Sepultura como músicos. “Manifest” relembra o massacre na penitenciária do Carandiru, em São Paulo, em outubro de 1992, quando 111 presos morreram.

O massacre na penitenciária do Carandiru,e em São Paulo, ocorrido em 1992, é tema de "Manifest".

Dentre os covers que o Sepultura gravou para Chaos A.D., apenas “The Hunt”, música da banda New Model Army, entrou de fato para o álbum. Os arranjos da versão do Sepultura são semelhantes aos da versão original do New Model Army. A banda brasileira apenas acrescentou mais peso e um pouco mais velocidade.

Num misto de peso e fúria, “Clenched Fist” traz em sua letra dor, angústia e raiva. A faixa tem vários andamentos que variam desde a mais lentidão à velocidade furiosa do hardcore. É a faixa que fecha a edição internacional de Chaos A.D.

Na edição brasileira, foi incluída como faixa-bônus “Polícia”, cover dos Titãs que o Sepultura havia gravado entre tantos covers que a banda havia gravado nas sessões de gravação de Chaos A.D. A versão do Sepultura para o hit dos Titãs, é punk metal rápido e caceteiro, e é ela que fecha a edição brasileira o álbum.

Tratado como prioridade da Roadrunner Records, o Sepultura ganhou uma festa de lançamento de Chaos A.D. bastante especial e curiosa, bancada pela gravadora. A festa ocorreu em 3 de setembro de 1993, aniversário de Igor Cavalera, e foi realizada num castelo construído no século XIII, em Caerphilly, ao sul do País de Gales. O evento especial contou com apenas 150 convidados, entre jornalistas, gente da gravadora, representantes da embaixada brasileira no Reino Unido, e alguns fãs que foram selecionados num concurso da revista Kerrang.

Formação clássica do Sepultura (da esquerda para a direita): Paulo Jr., Max Cavalera, Igor Cavalera e Andreas Kisser.

Para o evento festivo, a gravadora preparou uma festa com uma temática medieval, com a presença de soldados em trajes medievais na entrada, monges, banquete, decoração e coral gregoriano, transportando todos os convidados para a Europa medieval. No entanto, o clima festivo medieval do lançamento foi quebrado com a apresentações de cultura brasileira como rodas de capoeira, música e coreografias afro-baiana, rituais de Candomblé com exibições de orixás.

A recepção de Chaos A.D. por parte da crítica foi positiva, tanto da crítica internacional como da brasileira. O público respondeu muito bem: o álbum vendeu mais de 1,5 milhão de cópias. No Reino Unido, Chaos A.D. chegou ao 11º da parada da  Official Charts, mesma posição alcançada na Alemanha na parada da Offizielle Top 100, e na Suíça, na parada da Sverigetopplistan. Chaos A.D. rendeu três singles, “Refuse / Resist”, “Territory” e “Slave New World”.

Poucos dias após o lançamento de Chaos A.D., o Sepultura iniciou uma turnê mundial que contou com o apoio da Roadrunner investiu U$ 1 milhão para promover o disco. As apresentações do Sepultura no Festival Hollywood Rock, no Rio de Janeiro e São Paulo, fizeram para da turnê de Chaos A.D.  A apresentação em São Paulo foi cercada por um mal entendido com a prisão de Max Cavalera, acusado de ter supostamente ter pisado de propósito na bandeira do Brasil atirada ao palco por um fã. Na verdade, Max pisou por querer na bandeira, a apanhou e a fixou num local visível do palco para o público como uma demonstração de orgulho da pátria. O equívoco mais tarde foi desfeito.

O grande legado de Chaos A.D. foi ter levado o Sepultura a buscar uma nova maneira de fazer sua música, explorando novas possibilidades sonoras, levando a banda mineira a desenvolver o seu trabalho de maneira diferente e muito pessoal, muito além do thrash metal praticado pelas bandas pelas bandas internacional.  A exploração das linhas percussivas afro-baianas iniciadas em Chaos A.D se acentuaram no álbum seguinte, Roots, de 1996, consolidando o estilo próprio do Sepultura, colocando a banda entre os principais nomes do metal mundial.

Faixas

  1. "Refuse/Resist" (Max Cavalera)       
  2. "Territory" (Andreas Kisser) 
  3. "Slave New World" (Evan Seinfeld - Max Cavalera)           
  4. "Amen" (Max Cavalera)       
  5. "Kaiowas" (instrumental) (Max Cavalera - Andreas Kisser - Paulo Jr. - Igor Cavalera)
  6. "Propaganda" (Max Cavalera)         
  7. "Biotech Is Godzilla" (Jello Biafra)   
  8. "Nomad" (Andreas Kisser)    
  9. "We Who Are Not As Others" (Max Cavalera)        
  10. "Manifest"  (Max Cavalera)
  11. "The Hunt" (cover do New Model Army) (Justin Sullivan - Robert Heaton)           
  12. "Clenched Fist" (Max Cavalera)

Sepultura: Max Cavalera (vocal – guitarra base - percussão - violão na faixa "Kaiowas")
Andreas Kisser (guitarra solo – violão de 12 cordas), Paulo Jr.(baixo e percussão )
Igor Cavalera (bateria e percussão).


"Refuse/Resist" (videoclipe)



"Territory"



"Slave New World" 




"Amen"




"Kaiowas"




"Propaganda"




"Biotech Is Godzilla" 




"Nomad"




"We Who Are Not As Others" 




"Manifest"




"The Hunt" 




"Clenched Fist"


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