“Da Lama Ao Caos” (Sony Music, 1994), Chico Science & Nação Zumbi
Na virada da
década de 1980 para a década de 1990, a capital de Pernambuco, Recife, vivia um
grande marasmo cultural. Nada de novo e instigante acontecia. A cidade ainda
vivia na ressaca da sonoridade tropical de Alceu Valença, Geraldo Azevedo
dentre outros artistas pernambucanos. Mas era uma geração que havia despontado nos
anos 1970.
Foi em cima
desse marasmo, dessa paralisia cultural, carente de novidades transformadoras
que um grupo formado por jovens músicos, artistas plásticos e intelectuais,
decidiu mudar aquela situação. Tendo à frente Chico Science, Fred Zero Quatro
(líder da banda Mundo Livre S/A), Renato Lins (mais conhecido como Renato L),
esse grupo de artistas criou o movimento denominado Manguebit. O nome era a
conjunção de mangue - referente aos manguezais tão presentes na geografia do Recife,
rico em biodiversidade - com o bit, de computador, representando a tecnologia,
a eletrônica, o futuro. Esteticamente, o movimento propunha a conexão entre as
tradições populares pernambucanas com a contemporaneidade, com as vanguardas.
Com o tempo, o nome do movimento passou a ser grafado como “Manguebeat”, com o
“beat” (ritmo, em inglês).
Recife: berço do movimento manguebeat nos anos 1990. |
Tendo a
música como principal veículo de expressão, o manguebeat propunha uma fusão
musical que envolvia os ritmos musicais tradicionais pernambucanos como
maracatu, coco e ciranda, com expressões musicais de cultura de massa como o rock,
rap, funk e o pop eletrônico. A cidade do Recife com os seus manguezais e sua
desigualdade social, era o cenário principal nas letras das músicas dos
cantores e bandas do movimento como Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação
Zumbi, que começava a ganhar força e agitar a cena musical da capital
pernambucana naquele começo dos anos 1990.
A banda Chico
Science & Nação Zumbi, nasceu da junção de músicos da banda de rock
Loustal e do bloco afro Lamento Negro, em 1991. Chico agregava à mistura
musical da sua nova banda, a sua experiência com cultura hip-hop, quando fazia
parte do grupo Orla Orbe, no final dos anos 1980. Em pouco tempo, a banda era
um dos principais nomes daquele novo movimento.
Chico Science (de pé de braços cruzados à esquerda) e Fred Zero Quatro: líderes respectivamente da Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre/SA, bandas disseminadoras do manguebeat. |
Em julho de
1992, foi divulgado nos meios de comunicação o release Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zero Quatro e que acabou
se tornando o manifesto do Manguebeat, o movimento, e consequentemente, todos
os artistas envolvidos ganharam visibilidade da grande mídia. A efervescência
musical no Recife chama a atenção da imprensa musical do resto do Brasil, que a
princípio, teve dificuldade de entender aquele novo caldeirão sonoro tão
poderoso e moderno que não se via desde o Tropicalismo. Em de dezembro de 1993,
a edição da revista Bizz daquele mês trouxe
uma entrevista com a banda Chico Science & Nação Zumbi. No mês seguinte, a
banda é uma das atrações da primeira edição do Festival Abril Pro Rock no
Recife, evento que nasce com a explosão do movimento Manguebeat, colocando a
capital pernambucana no mapa da música pop contemporânea brasileira.
Recife logo
ficou pequena para Chico Science & Nação Zumbi. Em julho de 1993, a banda é
capa do Caderno 2 do “Jornal do Brasil”, do Rio de Janeiro. Na mesma época,
Chico e seus companheiros fazem uma pequena turnê por São Paulo, Rio de Janeiro
e Belo Horizonte, abrindo assim caminho para outras bandas pernambucanas. A banda
assina contrato com o selo Chaos, uma subsidiária da Sony Music, e entre meados
de 1993 e janeiro de 1994, e entra no estúdio Nas Nuvens, no Rio de
Janeiro, para gravar o seu primeiro álbum, sob a produção de Liminha.
Chico Science & Nação Zumbi e o produtor Liminha durante as gravações de Da Lama Ao Caos. |
O álbum de
estreia de Chico Science & Nação Zumbi já estava praticamente pronto no
início de 1994, mas por causa da caxumba contraída pelo guitarrista Lúcio Maia,
o músico não pode gravar as guitarras, o lançamento do álbum foi adiado.
Finalmente, após o músico ter gravado as bases e solos de guitarra, o
intitulado álbum Da Lama Ao Caos foi lançado em abril de 1994.
A faixa que
abre o álbum é “Monólogo Ao Pé Do Ouvido”, cujos primeiros versos são uma
tradução do movimento manguebeat: “Modernizar o passado é uma evolução
musical...”. Sob uma base percussiva, Chico Science saúda Zapata, Zumbi,
Antônio Conselheiro, Augusto Sandino e Panteras Negras, cada um fazendo as suas
revoluções, defendendo a seus modos as suas causas, assim como Chico Science e
os “mangueboys” promoveram uma revolução na música pop brasileira nos anos
1990.
Emendada na
primeira faixa, “Banditismo Por Uma Questão De Classe” é uma embolada cheia de
percussão e guitarras ferozes na qual Chico Science versa sobre o banditismo
social. O crescimento voraz de uma metrópole como Recife em confronto com a
riqueza natural dos seus mangues é o tema da faixa seguinte, “Rios, Pontes E
Overdrives”. “A Cidade” é uma embolada pop que retrata a realidade as mazelas
sociais do Recife. Em “A Praieira”, Chico Science & Nação Zumbi conectam na
tomada a ciranda, um ritmo popular e tradicional da cultura pernambucana,
acrescentando baixo e guitarras. A música ficou célebre pelos versos “Uma
cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”.
Contraste social no Recife: tema abordado pela canção "A Cidade". |
“Samba
Makossa” é um cruzamento do samba brasileiro com a makossa, ritmo típico da
República dos Camarões. A fusão promovida pela banda pernambucana é acrescida
de uma guitarra melódica executada com competência por Lúcio Maia. Luta pela
sobrevivência contra a fome num cenário de miséria numa metrópole como Recife,
é o tema central de “Da Lama Ao Caos”, faixa que dá nome ao álbum, enquanto que
a violência orbita os versos de “Maracatu Certeiro”, um maracatu cheio
de guitarras distorcidas e raivosas.
Na curta e instrumental
“Salustiano Song”, Chico Science & Nação Zumbi prestam homenagem ao cantor
e rabequeiro Mestre Salustiano, uma das figuras mais importantes da cultura
popular de Pernambuco. Lúcio Maia faz solos na sua guitarra que simulam uma
rabeca. Com uma envolvente base funk, “Antene-se” aborda a dura realidade
social do Recife, mas aponta que a mudança dessa realidade estaria no mangue:
“Recife, cidade do mangue / Onde a lama é a insurreição / Onde estão os homens
caranguejos”. Os tais “homens caranguejos” seriam os seres pensantes, com a
capacidade de promover a transformação dessa realidade, provavelmente os
próprios membros do movimento mangue beat (os “mangueboys” e as manguegirls”) e
a sua busca pela revolução cultural na capital pernambucana.
Chico Science: líder da Nacção Zumbi e um dos articuladores do movimento manguebeat. |
“Risoflora”
traz um pouco de romantismo ao álbum, mas sem sair do “habitat natural” do
álbum, os mangues e os rios do Recife: “Em meus braços te levarei como uma flor
/ Pra minha maloca na beira do rio, meu amor”. “Lixo Mangue” é mais uma faixa
curta e instrumental de Da Lama ao Caos e que traz riffs
poderosos e pesados de guitarra de Lúcio Maia sobre uma base percussiva que
lembra o frevo. Na visionária “Computadores Fazem Arte”, Chico Science já
discutia o avanço do emprego da tecnologia na produção artística, algo que se
tornaria ao longo do tempo cada vez mais intenso. Fechando o álbum, outra faixa
instrumental, “Coco Dub (Afrociberdelia)”, onde mais uma vez a guitarra de
Lúcio Maia se destaca, em meio à percussão e loops.
Da Lama Ao Caos causou um certo estranhamento para o
grande público e até mesmo para parte da crítica. Mas aos poucos, o álbum foi
sendo assimilado e conquistando a confiança do público. Algumas faixas do álbum
começaram a tocar nas emissoras de rádio e TV. “A Cidade” teve o seu vídeo
clipe bastante veiculado na MTV Brasil. A música foi incluída da trilha sonora
da segunda versão da novela Irmãos
Coragem, da Rede Globo, em 1994. No mesmo ano, outra faixa do álbum fez
parte de trilha sonora de novela, “A Praieira”, desta vez da novela Tropicaliente, também da Rede Globo.
Isso ajudou a dar mais visibilidade a Chico Science & Nação Zumbi.
Com pouco
mais de 100 mil cópias vendidas, a fama de Da Lama Ao Caos ultrapassou as
fronteiras brasileiras. O álbum foi matéria jornalística da imprensa
internacional, como a edição norte-americana da revista Rolling Stone. Logo surgiram convites para apresentações no exterior
e uma primeira turnê internacional por cinco países. Em julho de 1995, Chico Science
& Nação Zumbi se apresentaram com Gilberto Gil no Central Park Summer
Festival, em Nova York, Estados Unidos. A banda deu uma esticada e tocou no
lendário CBGB’s, templo do punk nova-iorquino. No mesmo ano, os pernambucanos
se apresentaram no Festival de Montreaux, na Suíça. Ainda sob o efeito do
prestígio de Da Lama Ao Caos, tocaram em janeiro de 1996, na oitava e última
edição do Festival Hollywood Rock.
Chico ainda
lançaria com a Nação Zumbi o segundo álbum da banda, o também elogiado Afrociberdelia,
em maio de 1996. Mas lamentavelmente, em 2 de fevereiro de 1997, o líder da
Nação Zumbi faleceu precocemente num acidente de carro numa estrada entre o
Recife e Olinda. Tinha apenas 30 anos de idade. Apesar de ter perdido a vida
ainda tão jovem, Chico Science deixou um legado riquíssimo para a música pop
brasileira. Mesmo com sua morte, a banda Nação Zumbi seguiu em frente levando o legado de Chico Science. Da Lama Ao Caos frequenta as listas
e enquetes de maiores álbuns da música brasileira de todos os tempos.
Faixas
- "Monólogo Ao Pé do Ouvido"
- "Banditismo Por Uma Questão de Classe
- "Rios, Pontes & Overdrives" (Chico Science e Fred Zero Quatro)
- "A Cidade"
- "A Praieira"
- "Samba Makossa"
- "Da Lama Ao Caos"
- "Maracatu De Tiro Certeiro" (Chico Science e Jorge du Peixe)
- "Salustiano Song" (instrumental) (Chico Science e Lúcio Maia)
- "Antene-se"
- "Risoflora"
- "Lixo Do Mangue" (instrumental) (Lúcio Maia)
- "Computadores Fazem Arte" (Fred Zero Quatro)
- "Coco Dub (Afrociberdelia)"
Todas as canções foram escritas por
Chico Science, exceto as indicadas.
Chico Science & Nação Zumbi: Chico
Science (voz, samplers em “Lixo Do Mangue”), Lúcio Maia (guitarras) Alexandre
Dengue (baixo), Canhoto (caixa), Gilmar Bolla 8 (alfaia), Gira (alfaia), Jorge
du Peixe (alfaia e tonel em "A Cidade") e Toca Ogam (percussão e
efeitos).
Ouça na íntegra o álbum Da Lama Ao Caos
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