“O Canto da Cidade” (Columbia, 1992), Daniela Mercury


No começo dos anos 1990, a axé music já era uma realidade. Havia revolucionado o cenário musical baiano, revelando dezenas de artistas, e criando um mercado fonográfico ativo e forte. Na virada da década de 1980 para os anos 1990, artistas e bandas de axé começavam a invadir os programas das grandes redes de TV do Brasil, através de Luiz Caldas, Chiclete com Banana, Sarajane, Banda Mel, Reflexu’s, Banda Beijo entre outros nomes.

Apesar dessa “invasão baiana” no cenário nacional da música, exceto um ou outro artista ou banda, a axé music ainda vivia uma certa aura de amadorismo. Quem vai mudar essa situação é Daniela Mercury, a partir de 1991, sobretudo na postura das cantoras de axé. Até antes de Daniela, as cantoras de axé não tinham domínio das próprias carreiras. Eram reféns de empresários que ditavam o que gravar, como cantar e até como se vestir. E neste último caso, geralmente eram figurinos pavorosos. Com a chegada de Daniela, essa situação mudou.

Álbum de estreia da Companhia Clic, em 1988,
com Daniela Mercury como vocalista.
Mas esse novo padrão de cantora de axé estabelecido por Daniela já vinha sendo concebido desde a época em que ela era vocalista da Companhia Clic, formada em 1988, em Salvador. A Clic era completamente diferente das outras bandas de axé da época. Trazia uma sonoridade mais pop e refinada, figurinos mais elegantes e que nada tinham a ver com o colorido exagerado e brega das outras bandas de axé. Daniela, então vocalista da banda, além de cantar muito bem, tinha formação em dança, e nos shows da Clic, já apresentava coreografias elaboradas. A vocalista estava gestando a cantora solo que ela viria a se tornar. Com a Companhia Clic, Daniela lançou dois álbuns. 

Após o segundo álbum da Clic, Daniela deixou a banda em 1990. Em 1991, lançou pela Eldorado (mesma gravadora da Companhia Clic), o seu primeiro e homônimo disco solo. O álbum emplacou o hit  “Swing da Cor”, com participação especial do Olodum, e vendeu modestas 78 mil cópias. O sucesso moderado do álbum ajudou Daniela a ter visibilidade no Sudeste, garantindo-lhe apresentações nas grandes redes de TV.

Mas foi uma apresentação surpreendente no vão aberto do MASP, em São Paulo, em junho de 1992 que mudou a vida de Daniela Mercury, aos 27 anos. O show ocorreu no projeto “Som do Meio Dia”, dedicado a artistas novos para entreter o público durante o horário do almoço na região da Av. Paulista. O que os organizadores não imaginavam é que a cantora pudesse atrair com a sua música e coreografia, um público estimado em 30 mil pessoas. A música contagiante de Daniela e a grande massa presente obrigaram os responsáveis do MASP a encerrarem o show antes da hora para garantir a ordem, a segurança do local e desafogar o trânsito da Av. Paulista que tinha virado um caos.
Daniela Mercury no vão aberto do MASP, em São Paulo, em 1992,
pouco antes do estrelato.
O fato virou notícia nacional e chamou a atenção da Sony Music que viu em Daniela, uma cantora com potencial para ser superstar da axé music. Ela assinou contrato com a Sony que lhe garantiu completa liberdade artística para gravar o primeiro álbum na nova casa, O Canto da Cidade. Para a produção do álbum, Daniela convocou Liminha, um dos mais conceituados produtores da música pop brasileira, e que já havia produzido grandes álbuns do rock nacional e da MPB como Cabeça Dinossauro (Titãs), Raça Humana (Gilberto Gil), Nós Vamos Invadir Sua Praia (Ultraje a Rigor), Selvagem (Paralamas do Sucesso) entre outros. Mesmo sendo um produtor experiente, Liminha teve certa dificuldade para lidar com aquele som “estranho” para ele, calcado nos tambores pulsantes do samba-reggae.

O Canto da Cidade chegou às lojas em setembro de 1992, e foi muito bem recebido pela crítica. A primeira música de trabalho do álbum foi a faixa-título que estourou em todo o país. Com os versos “A cor dessa cidade sou eu / o canto dessa cidade é meu”, “O Canto da Cidade” abre o álbum, é a faixa mais forte do disco. Os versos do refrão representam um grito de afirmação da identidade do povo negro de Salvador, de ser esse povo a imagem e a voz dessa cidade.


Novo padrão: Daniela estabelece um novo padrão de cantora de axé,
trazendo um cuidado maior com o figurino e a coreografia.
A segunda faixa, “Batuque”, impressiona pela percussão pesada do samba-reggae que remete aos blocos-afros de Salvador. No cover de "Você Não Entende Nada”, Daniela transita entre o axé e a MPB com elegância. Em "Bandidos da América", de Jorge Portugal, Daniela canta as agruras do continente americano e da África em cima de uma base instrumental que reveza axé, samba-duro e samba-reggae. Daniela mostra que vai muito além de uma simples cantora de trio-elétrico em “Geração Perdida", onde ela deixa aflorar o seu lado intérprete. Já em "Só Pra Te Mostrar", um dueto com Herbert Viana, Daniela revela a sua veia pop e que não fica presa às amarras da musicalidade afro-baiana. Os tambores afros voltam com força em "O Mais Belo Dos Belos", um canto de orgulho de ser Ilê Ayê, enquanto que no samba-reggae “Rosa Negra”, Daniela pede para que ouçamos o Muzenza cantar. Seguem o axé “asadeaguiano” "Vem Morar Comigo", o pop “Exótica Das Artes”, o samba-duro "Rimas Irmãs" e o frevo cheio de teclados “Monumento Vivo”, fechando o álbum.

Com cerca de 2 milhões de cópias vendidas, O Canto da Cidade foi o exemplo mais bem sucedido de um álbum de axé music que foi sucesso de público e de crítica. No final de 1992, Daniela ganhou um programa especial na Globo, onde contou com participações especiais de Tom Jobim e Caetano Veloso. As faixas “O Canto Da Cidade", “O Mais Belo Dos Belos", "Você Não Entende Nada" e "Batuque" tocaram muito no rádio. Outro hit do álbum, "Só Pra Te Mostrar", fez parte da trilha sonora da novela “Renascer”, da Rede Globo, em 1993. No mesmo ano, Daniela apresentou-se no Festival de Jazz de Montreux na Suíça. Daniela Mercury tornou-se uma estrela de primeira grandeza da música brasileira e teve o mérito de elevar o status da axé music que até então, ainda tinha sua imagem associada negativamente ao "Fricote" de Luiz Caldas.

Daniela agitando o carnaval de Salvador, em 1993.
O grande legado de O Canto da Cidade é que através desse álbum, Daniela inaugurou um novo padrão de cantora de axé. Inspirada provavelmente na autonomia e profissionalismo de cantoras pop internacionais como Madonna e Janet Jackson, Daniela trouxe para a axé music um padrão de cantora mais contemporânea e independente. Ela mostrou que uma cantora de axé poderia ter controle da carreira, escolher o próprio repertório, ter uma produção de show caprichada com figurino e coreografia elaborados. Apoiada nessa receita e no sucesso de O Canto da Cidade, Daniela Mercury construiu uma carreira artística muito bem estruturada e que serviu de referência para outras cantoras de axé que viriam depois e que se tornariam grandes estrelas: Ivete Sangalo e Claudia Leitte. Ambas são claramente discípulas da “Rainha do Axé”, mas nenhuma delas conseguiu gravar um álbum com a mesma relevância de O Canto da Cidade.

Faixas
  1. "O Canto da Cidade" (Daniela Mercury - Tote Gira)
  2. "Batuque"  (Rey Zulu - Genivaldo Evangelista)
  3. "Você Não Entende Nada” (Caetano Veloso) / “Cotidiano" (Música Incidental) (Chico Buarque)
  4. "Bandidos da América" (Jorge Portugal)
  5. "Geração Perdida"  (Daniela Mercury - Ramon Cruz e Toni Augusto)
  6. "Só Pra Te Mostrar" (Herbert Vianna)
  7. "O Mais Belo dos Belos’ (A Verdade do Ilê / O Charme da Liberdade)” (Guiguio - Valter Farias  - Adailton Poesi)
  8. "Rosa Negra"  (Jorge Xaréu)
  9. "Vem Morar Comigo" (Daniela Mercury - Durval Lelys)
  10. "Exótica das Artes" (Armandinho Macedo - Edmundo Caroso)
  11. "Rimas Irmãs"  (Carlinhos Brown)
  12. "Monumento Vivo" (Moraes Moreira - Davi Moraes)

Ouça o álbum O Canto da Cidade na íntegra

"O Canto da Cidade"

"Batuque" 

"Você Não Entende Nada” / “Cotidiano"

"Bandidos da América"

"Geração Perdida"

"Só Pra Te Mostrar"

"O Mais Belo dos Belos’ 
(A Verdade do Ilê / O Charme da Liberdade)”

"Rosa Negra"

"Vem Morar Comigo"

"Exótica das Artes"

"Rimas Irmãs"

"Monumento Vivo"

"O Canto da Cidade"
(videoclipe oficial)

"O Mais Belo dos Belos"
(videoclipe oficial)

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