“Criaturas da Noite” (Underground/Copacabana, 1975), O Terço


Por Sidney Falcão

No Brasil dos anos 1970, o rock progressivo encontrou o palco perfeito para florescer. A Tropicália havia pavimentado o caminho para experimentações ousadas, e o rock nacional começava a desenhar sua própria identidade, misturando elementos do novo e do tradicional. Nesse contexto efervescente, bandas como Os Mutantes, Som Imaginário, Módulo 1000 e Som Nosso de Cada Dia criaram universos musicais que oscilavam entre o psicodélico e o sinfônico, enquanto O Terço se destacava como uma força criativa à parte. 

Foi com Criaturas da Noite (1975) que O Terço carimbou seu passaporte para a eternidade. O terceiro álbum do grupo trouxe uma mistura impecável de ambição progressiva e raízes brasileiras, traduzindo a sofisticação de nomes como Yes e Genesis para o calor tropical. Faixas como "Hey Amigo" e "Queimada" mostraram que era possível casar arranjos grandiosos com uma sensibilidade rural única. Resultado? Um clássico absoluto, que não apenas consolidou a banda como um ícone, mas provou que tradição e vanguarda podem, sim, dançar a mesma música. 

O Terço nasceu em 1968, no Rio de Janeiro, como fruto da fusão entre as bandas Joint Stock Co. e Hot Dogs. A formação inicial reunia Jorge Amiden (1950-2014; guitarra)  e Vinícius Cantuária (bateria), vindos da Joint Stock Co., com Sérgio Hinds (baixo), ex-Hot Dogs. 

Por se tratar de um trio, o nome da nova banda seria Santíssima Trindade, mas logo descartou a ideia para evitar problemas com a Igreja Católica. A solução veio com uma sacada inteligente: "terço" é uma fração que representa a terça parte de algo, exatamente como a estrutura do grupo — guitarra, baixo e bateria. De quebra, o termo também evoca o rosário, instrumento de oração na liturgia católica, que também simboliza unidade e espiritualidade. Segundo o guitarrista Sérgio Hinds, o nome foi considerado ideal por reforçar tanto a estrutura do grupo quanto um significado maior de união. 

Logo no primeiro disco, lançado em 1970, o grupo mostrou uma identidade única, mesclando rock dos anos 1950, psicodelia, folk e música erudita. O diferencial? Vocais em falsete que impressionaram em festivais e renderam prêmios importantes. 

Mas o caminho da banda não foi linear. Sérgio Hinds deixou o grupo brevemente, sendo substituído por Cezar de Mercês no baixo. Quando retornou, agora como guitarrista, a banda se tornou um quarteto e passou a experimentar com sonoridades mais ousadas. Com a entrada de Guarabyra (de Sá, Rodrix & Guarabyra), surgiram instrumentos como a tritarra e o violoncelo elétrico, ampliando os horizontes musicais do grupo. Contudo, em 1972, os conflitos internos culminaram na saída de Jorge Amiden, que formaria o Karma. 

Essa fase também trouxe colaborações de peso, como no disco Vento Sul (1972), de Marcos Valle, e apresentações internacionais, incluindo o prestigiado Festival do Midem, na França. Um início turbulento, mas que pavimentou o caminho para a grandiosidade. 

Capa do primeiro álbum de O Terço, lançado como trio, em 1970.


Em 1972, O Terço abraçou de vez o rock progressivo, inspirado por nomes ingleses como Yes e Genesis. Compactos com arranjos elaborados pavimentaram o caminho para o segundo álbum, Terço (1973), que trouxe a grandiosa suíte "Amanhecer Total" e participações especiais de Luiz Paulo Simas e Paulo Moura. Após o lançamento, mudanças marcaram a formação: Vinícius Cantuária saiu, dando lugar a Luiz Moreno (bateria), enquanto Sérgio Magrão assumiu o baixo e Cezar de Mercês passou à guitarra rítmica. 

A banda ainda flertou com o "rock rural" ao colaborar no disco Nunca (1974), de Sá e Guarabyra. No mesmo período, Flávio Venturini, indicado por Milton Nascimento, trouxe frescor criativo aos teclados. Em 1975, Mercês deixou a formação oficial, mas continuou como compositor, provando que seu elo com O Terço ia além do palco. 

1975 foi o ano em que O Terço encontrou sua formação mais emblemática e deu um salto criativo. Sob a liderança do virtuoso Sérgio Hinds, a banda refinou sua sonoridade progressiva. Sérgio Magrão entregou linhas de baixo melódicas que dialogavam com a complexidade instrumental, enquanto Luiz Moreno comandava a bateria com precisão. Flávio Venturini, nos teclados e vocais, trouxe uma sensibilidade lírica que definiria o clássico Criaturas da Noite. 

Foi também o ano de uma mudança estratégica: com o apoio do empresário Mário Buonfiglio, o grupo trocou o Rio de Janeiro por São Paulo, buscando expandir seu alcance. A aposta deu certo. A banda passou a fazer de 150 a 200 shows anuais, um feito impressionante no cenário do rock nacional, consolidando seu lugar entre os grandes nomes da música brasileira. 

Sem gravadora, mas com determinação de sobra, O Terço resolveu bancar do próprio bolso as gravações do terceiro álbum. Entre novembro de 1974 e maio de 1975, o grupo ocupou o estúdio Vice-Versa, em São Paulo, um dos raros com 16 canais no Brasil da época. Para dar um toque de sofisticação, convocaram Rogério Duprat (1932-2006), o maestro visionário da Tropicália, que orquestrou faixas como “1974”. Além disso, Cézar de Mercês, ex-integrante, colaborou com letras e composições, enquanto Marisa Fossa (ex-O Bando) emprestou harmonias vocais que ampliaram a profundidade sonora do álbum. 

Com o trabalho pronto, o empresário Mário Buonfiglio bateu de porta em porta. Embora elogiado, o material enfrentou resistência. Ironicamente, a única interessada foi a Copacabana, mais associada à música brega do que ao rock progressivo. Mas a gravadora surpreendeu: não só assinou com a banda, como financiou a fabricação do disco e apostou alto em sua promoção internacional. Um gesto ousado que mostrou que até o inesperado tem espaço no universo do rock brasileiro.

Capa dupla interna do álbum Criaturas da Noite.

Gravado durante uma fase de intensa experimentação, Criaturas da Noite ganhou versões em português e inglês, um movimento ousado para conquistar o mercado internacional sem abrir mão de sua essência brasileira. Essa dualidade traduz o espírito inquieto do grupo, que buscava expandir fronteiras culturais e consolidar o disco como um marco no rock progressivo nacional. 

No plano musical, o álbum é um casamento improvável, mas brilhante, entre o rock progressivo inglês e as raízes rurais brasileiras. A influência de gigantes como Yes salta aos ouvidos nos arranjos intricados, nos sintetizadores etéreos e na estrutura sofisticada das faixas. Mas o diferencial de Criaturas da Noite está na alma brasileira: viola, percussões e uma atmosfera única que transformaram o disco em um clássico atemporal do gênero. 

A fusão entre estruturas musicais ousadas e temas que capturam a alma brasileira confere a Criaturas da Noite uma profundidade incomum. As harmonias vocais, lapidadas com esmero, e a instrumentação diversificada destacam o talento técnico e a inventividade da banda, consolidando o álbum como um clássico do rock progressivo nacional. 

A abertura com “Hey Amigo” é pura energia. O hard rock direto, guiado por um riff de baixo irresistível, serve como uma porta de entrada para o universo do disco. A letra simples, mas envolvente, é um convite para mergulhar na obra. A guitarra, somada aos vocais de apoio, cria uma atmosfera cativante, transformando a faixa em um cartão de visitas perfeito. 

“Queimada” marca a incursão do Terço no universo do rock rural, uma sonoridade inaugurada por Sá, Rodrix & Guarabyra. A faixa traz Flávio Venturini assumindo a viola, que confere um sabor sertanejo à canção, enquanto as harmonizações vocais realçam a beleza melódica. Com uma mensagem de alerta contra as queimadas nas florestas brasileiras, a música destaca a sensibilidade do grupo para questões ambientais em um período em que esse tema ainda não era amplamente debatido. 

Já em “Pano de Fundo,” o grupo retoma o peso com um hard rock temperado pelo espírito do rock progressivo. A combinação entre guitarra, baixo e bateria cria uma base robusta, enriquecida pelos teclados de Venturini. A parte final da faixa é um espetáculo instrumental, onde a banda exibe sua habilidade técnica, com destaque para a marcante linha de baixo e a percussão vibrante. 

“Ponto Final” é o momento em que O Terço prova que emoção não precisa de palavras. Esse rock progressivo instrumental, pontuado por vocalizações etéreas, coloca Flávio Venturini no centro das atenções. Seja no piano ou nos sintetizadores, Venturini conduz a faixa com uma carga emocional que transcende a técnica, criando uma experiência quase espiritual para o ouvinte. 

O Terço em 1975, da esquerda para a direita: Flávio Venturini, Luiz Moreno,
Sérgio Hinds e Sérgio Magrão.

A intensidade emocional dá lugar à urgência de “Volte Na Próxima Semana,” uma pancada de rock pesado que não poupa energias. A letra aborda o impacto das mudanças inevitáveis e a passagem do tempo, enquanto a atmosfera lisérgica convida à introspecção. É uma faixa direta, mas com profundidade filosófica. 

A faixa-título, “Criaturas da Noite,” é a joia do álbum e talvez de todo o rock brasileiro. A melodia delicada, conduzida pelo piano de Venturini, e os vocais em uníssono criam uma atmosfera de pura beleza. Os arranjos orquestrais de Rogério Duprat elevam a composição a um patamar sublime, unindo o lirismo do progressivo à introspecção da música brasileira. O resultado é uma peça inesquecível, onde cada nota parece carregar uma emoção única. 

Em “Jogo das Pedras”, O Terço revisita o rock rural, mas com uma abordagem própria. Enquanto “Queimadas” flertava com a acústica, essa faixa mistura a guitarra elétrica com a viola, fundindo a pulsação do rock com a alma sertaneja. A letra, com seu toque de mistério, reflete sobre os ciclos de sorte e azar, como um jogo onde o destino parece lançado ao acaso, reforçado pela repetição quase hipnótica dos versos. 

O álbum se fecha com a grandiosa “1974”, uma suíte instrumental de mais de dez minutos que é a verdadeira exibição de técnica e virtuosismo. Os sintetizadores e as guitarras criam paisagens sonoras ricas e complexas, ora dinâmicas, ora introspectivas, abraçando o sinfônico europeu e mostrando o domínio da banda em uma atmosfera de pura experimentação musical. 

Criaturas da Noite chegou como um sopro de originalidade em um Brasil que começava a se apaixonar pelo rock progressivo. Enquanto bandas como Yes e Genesis dominavam as paradas internacionais, O Terço trazia uma proposta distinta, que mesclava a complexidade do gênero com a riqueza da música brasileira. A crítica, embora aplaudisse a ousadia e a técnica, destacou que o sucesso comercial foi contido, um reflexo de um público ainda em amadurecimento. 

O impacto do álbum foi indiscutível. Ele ajudou a solidificar o rock progressivo no país, mostrando que era possível fundir influências estrangeiras com a alma brasileira, sem perder a sofisticação. Criaturas da Noite não só inspirou músicos do gênero, como também ampliou os horizontes do rock nacional. 

Mais do que um marco do rock progressivo brasileiro, Criaturas da Noite é um testemunho da capacidade de unir sofisticação musical e acessibilidade, numa época em que fazer rock no Brasil era um ato heroico. Com suas composições elaboradas, arranjos criativos e letras que dialogam com as raízes culturais do Brasil, o álbum conseguiu transcender as limitações de um gênero então considerado de nicho.

 

Faixas

Lado 1

  1. “Hey Amigo” (Cesar De Mercês)
  2. “Queimada” (Cesar De Mercês - Flávio Venturini)
  3. “Pano De Fundo” (Cesar De Mercês - Sérgio Magrão)
  4. “Ponto Final” (Luiz Moreno)
  5. “Volte Na Proxima Semana” (Sérgio Hinds) 

Lado 2

  1. “Criaturas Da Noite” (Flávio Venturini - Luiz Carlos Sá)
  2. “Jogo Das Pedras” (Cesar De Mercês - Flávio Venturini)
  3. “1974” (Flávio Venturini)

 

O Terço: Sérgio Hinds (guitarra elétrica, viola brasileira e vocais), Sérgio Magrão (baixo e vocais), Flávio Venturini (piano, órgão, sintetizador, violão acústico de 12 cordas e vocais)e Luiz Moreno (bateria e vocais).


Ouça na íntegra o álbum Criaturas da Noite

Ouça na íntegra o álbum 
Criaturas da Noite em inglês

Comentários