“Duplo Sentido” (Warner, 1987), Camisa de Vênus



Por Sidney Falcão 

Entre 1986 e 1987, o Camisa de Vênus vivia o auge de sua popularidade. Com o álbum Correndo o Risco batendo a marca de 300 mil cópias vendidas e conquistando um disco de platina, a banda se consolidava como uma das mais emblemáticas do rock brasileiro. O sucesso nos palcos, no entanto, contrastava com o caos nos bastidores. Marcelo Nova, vocalista e principal motor criativo do grupo, encarava com crescente insatisfação o comportamento de seus companheiros de banda. 

O impacto da fama e do dinheiro logo se traduziu em desrespeito mútuo, piadas agressivas e ofensas pessoais, criando um ambiente que, em vez de inspirar a criatividade, tornava-se cada vez mais tóxico. Um dos episódios mais marcantes dessa degradação envolveu o baterista Aldo Machado, que encontrou a maçaneta de seu quarto de hotel emporcalhada com um palito de picolé sujo de fezes. Em outra ocasião, o guitarrista Gustavo Mullem (1952-2024) foi deixado nu no corredor de um hotel, ainda bêbado, após mais uma noite de farra. Embora essas cenas possam parecer piadas de mal gosto, elas revelavam a pressão crescente e a deterioração das relações pessoais. 

O estopim foi uma briga no camarim, quando um integrante empurrou o empresário da banda para dentro do chuveiro de forma agressiva. Foi a "gota d'água" para Marcelo Nova, que decidiu, na volta do show, comunicar à banda que sua permanência não seria mais possível. Apesar do desgaste, ainda havia obrigações contratuais com a gravadora WEA. Marcelo, então, negociou com André Midani (1932-2019), presidente da gravadora, para que um álbum duplo quitasse o contrato pendente. Duplo Sentido foi o segundo álbum duplo de estúdio da história do rock brasileiro. O primeiro foi Saqueando a Cidade, da banda Joelho de Porco, lançado em 1983. 

Último registro da formação clássica do Camisa de Vênus, Duplo Sentido foi lançado em outubro de 1987. O álbum é um reflexo da tensão interna que marcava a banda, misturando crítica social, ironia e um tom sombrio que já prenunciava o fim de uma era. As gravações ocorreram após a turnê de Correndo o Risco, em meados de 1987, já estando acertado que a banda se dissolveria após a turnê do novo álbum, embora Marcelo tivesse proposto ficar na banda até que encontrassem um novo vocalista. Contudo, os companheiros de banda preferiram o fim do grupo, mas, antes, gravariam o álbum e fariam a turnê de despedida. 

As gravações de Duplo Sentido ocorreram nos estúdios RAC, em São Paulo, os mesmos onde a banda havia gravado Correndo o Risco, em 1986. A produção ficou novamente a cargo de Pena Schmidt, o mesmo produtor do álbum anterior. Dentre os convidados ilustres estavam Raul Seixas (1945-1989), que fez um dueto com Marcelo Nova em “Muita Estrela, Pouca Constelação” (composta pelos dois roqueiros baianos), e o saxofonista Manito (1944-2011), que, além de saxofone, tocou flauta e órgão Hammond em algumas faixas. 

Diferente dos álbuns anteriores, o ambiente de gravação de Duplo Sentido foi melancólico, com um clima de fim de banda. Os integrantes raramente se encontravam durante as gravações; cada um gravava sua parte separadamente. O produtor Pena Schmidt ficou encarregado de reunir o material gravado para realizar o processo de mixagem. Sobre Duplo Sentido e sua gravação, em entrevista ao jornalista André Barcinski, Marcelo Nova declarou: “É um disco triste, melancólico, de final de etapa. Ali não tinha mais nada, só um contrato a cumprir.” 

Robério Santana, Karl Hummel, Gustavo Mullem, Marcelo Nova e Aldo Machado,
em sessão de fotos para o álbum Correndo o Risco, de 1986.

Apesar do clima de despedida nas sessões de gravação, Duplo Sentido é um trabalho muito bem cuidado e musicalmente eclético, no qual a banda transita pelo rock and roll, punk rock, blues, balada acústica e até tango. Embora, para alguns, esse ecletismo passe a impressão de se tratar de um álbum pouco coeso, o lado positivo é que ele evidencia a evolução técnica dos músicos da banda. Um dado relevante é que, desde que o Camisa migrou para a WEA, onde encontrou as melhores condições técnicas de gravação, o som da bateria de Aldo Machado e do baixo de Robério Santana foi especialmente valorizado; os timbres de seus instrumentos ficaram mais intensos e encorpados. Isso é perceptível não apenas em Correndo o Risco, mas também em Duplo Sentido. 

Composto por dezessete faixas distribuídas em dois discos, Duplo Sentido traz, além de músicas próprias do Camisa de Vênus, releituras de canções de outros artistas, entre elas “Aluga-se” (Raul Seixas), “Canalha” (Walter Franco, 1945-2019) e "Farinha do Desprezo" (Jards Macalé). 

O primeiro disco abre com um áudio da voz de Al Pacino no filme Scarface (1983), dirigido por Brian De Palma. É a senha para dar início a “Lobo Expiatório,” um rock veloz e vigoroso que, na verdade, é uma manifestação solidária do Camisa de Vênus a Lobão, que estava preso na época por porte de drogas. A prisão de Lobão gerou grande repercussão na mídia. “Lobo Expiatório” aborda a hipocrisia social e política, revelando a tendência de buscar culpados e criar narrativas simplistas para problemas complexos. Por meio de metáforas sobre violência, medo e desejo, a canção expõe a repetição histórica de injustiças e discursos vazios, marcados por um ciclo de opressão e conformismo. Merecem destaque nesta faixa os vocais femininos de apoio, interpretados por duas integrantes do grupo vocal Harmony Cats: Cidinha e Rita Kfoury. 

A faixa seguinte, “O País do Futuro,” começa em um ritmo suingado, com direito a cuíca e Marcelo Nova pronunciando, de forma irônica, o slogan da ditadura militar: “Ninguém segura este país.” Com tom debochado, o Camisa de Vênus critica, nesta música, a corrupção e a desigualdade social no Brasil, que resultaram em desilusão em um país que havia recém-reconquistado a democracia após vinte anos de regime militar. 

Em “Ana Beatriz Jackson,” Marcelo Nova canta versos sarcásticos sobre um relacionamento fracassado, pintando um retrato irônico e crítico de uma mulher materialista e manipuladora. A letra explora temas como decepção amorosa, a futilidade da riqueza e a vingança. Em poucas palavras, a música aborda um relacionamento tóxico e a tentativa do protagonista de se libertar de uma mulher que o enganou. 

“Voo 985” explora a angústia emocional e o vazio existencial, utilizando o voo como metáfora para as incertezas e perdas pessoais. O primeiro lado do disco 1 termina no ritmo veloz de “Após Calipso,” que descreve um cenário apocalíptico, onde o caos e a perda de valores indicam o colapso da civilização e da humanidade. 

Lobão em detalhe da capa do álbum Vida Bandida, de 1987: "Lobo Expiatório"
foi composta pelo Camisa de Vênus e dedicada a Lobão. 

O segundo lado do disco 1 começa com o blues “Me Dê Uma Chance,” a única faixa do álbum gravada ao vivo no estúdio, com todos os músicos tocando juntos, desde os integrantes do Camisa de Vênus até os músicos convidados. Sem sombra de dúvida, é um dos pontos altos de Duplo Sentido. Talvez pelo fato de ter sido gravada ao vivo no estúdio, a música apresenta um som mais espontâneo e transmite ao ouvinte o clima de um bar americano onde se toca blues ao vivo. Nova canta a plenos pulmões e mostra-se completamente à vontade. Além dos integrantes do Camisa, merecem destaque as performances dos músicos convidados, como Manito, nos solos de saxofone, e Sérgio Kaffa, no piano. 

Depois do clima festivo de “Me Dê Uma Chance,” o tom se torna mais introspectivo e romântico com a balada acústica “Deusa da Minha Cama,” que celebra a intensidade de um amor inesperado. Com um tom vibrante e apaixonado, a música explora a experiência sensorial e emocional de um encontro amoroso, revelando a beleza da mulher amada e a transformação que o amor provoca no eu lírico da canção. É curioso pensar que essa canção foi gravada pela mesma banda que, um ano antes de Duplo Sentido, lançou uma música tão sexista e machista como “Sílvia.” 

“Chamam Isso Rock and Roll” é a última faixa do primeiro lado do disco 2. A música reflete a rotina exaustiva e desiludida da vida de uma banda de rock em turnê, desmistificando o glamour associado ao rock’n’roll. Ela começa de forma lenta, segue em um ritmo arrastado e, na reta final, ganha velocidade com uma levada rock’n’roll, encerrando a faixa de maneira apoteótica.

Arte do artista gráfico baiano Miguel Cordeiro presente na parte interna da
capa dupla do álbum Duplo Sentido.

O segundo disco do álbum duplo começa com a debochada “Muita Estrela, Pouca Constelação”, em que Raul Seixas e Marcelo Nova disparam ironia como quem atira garrafas no mar, certos de que alguém as entenderá. É desfile de tribos: punk que protesta por moda, new wave montado no ego, metaleiro barulhento, dark de boutique. A crítica é ácida, mas a gargalhada é sincera — e amarga. Não faltam alfinetadas ao sistema: uma indústria que prefere a cópia bem penteada à arte de verdade. Tudo brilha, mas não ilumina. São Raul e Marcelo, lúcidos no caos, mostrando que estrela demais só ofusca. Constelação que é bom, cadê? Só pose, pouca poesia.

Logo após um rock’n’roll, o Camisa de Vênus adota o ritmo de tango com “O Último Tango.” A letra, carregada de humor ácido, aborda a história de um sujeito que vive um relacionamento conturbado com sua amada, marcado por ironias, frustrações cotidianas e traições, refletindo a banalidade dos dramas humanos em tom irreverente: “Numa noite tão antiga, num barzinho de bordel / Você disse é o inferno; eu lhe prometi o céu / Jurei que lhe cobriria de ouro e diamantes / Você xingou a minha mãe e me chamou de tratante.” 

Para Duplo Sentido, o Camisa de Vênus apresentou uma releitura de uma antiga música sua, “Pronto Pro Suicídio,” originalmente lançada no primeiro e homônimo álbum, em 1983. A banda criou um novo arranjo, completamente diferente do punk rock da versão original, e o resultado é uma canção com um ritmo mais lento, um perfil mais maduro e, ao mesmo tempo, mais sombrio. Apesar de manter a mesma letra da versão original, a nova interpretação foi rebatizada como “O Suicídio Parte II.” 

“Chuva Inflamável” é a única faixa instrumental de Duplo Sentido e é ela quem encerra o primeiro lado do disco 2. Aqui, fica mais evidente a evolução dos integrantes do Camisa de Vênus como músicos. Porém, esta foi a segunda música instrumental gravada pela banda baiana. A primeira foi “Coiote no Cio,” presente no segundo álbum do Camisa, Batalhões de Estranhos, lançado em 1985. 

Duplo Sentido traz uma regravação de "Pronto Pro Suicídio", presente no
primeiro álbum e homônimo álbum do Camisa de Vênus (foto). Porém a releitura foi
batizada como "O Suicídio Parte II", apesar de possui a mesma letra da versão original.

O segundo lado do disco 2 é totalmente dedicado a releituras de canções de outros artistas. A faixa que abre este lado é “Enigma,” composta por Adelino Moreira (1918–2002) e gravada originalmente por Nélson Gonçalves (1919–1998) em ritmo de samba-canção. Para o álbum Duplo Sentido, o Camisa fez uma releitura em um ritmo acelerado de rock. “Enigma” critica a hipocrisia e o julgamento alheio, exaltando a individualidade e desafiando os padrões impostos por uma sociedade moralista. Não era a primeira vez que o Camisa gravava uma música de Adelino. Em 1983, o quinteto fez uma versão irônica e irreverente de “Negue,” parceria de Adelino e Enzo de Almeida Passos (1928–1991), imortalizada na voz de Maria Bethânia. 

Fruto da parceria de José Carlos Capinam e Jards Macalé, “Farinha do Desprezo” foi gravada pela primeira vez pelo próprio Macalé em 1972. “Farinha do Desprezo” simboliza a dor do indivíduo ser ignorado, menosprezado e humilhado. Anteriormente, o Camisa havia gravado outra canção de Capinam e Macalé, “Gotham City”, para o álbum Batalhões de Estranhos, de 1985. 

"A Canção do Martelo" é uma versão em português de “Hammer Song”, da banda Alex Harvey Band, de 1972. Vertida para o português por Marcelo Nova, "A Canção do Martelo" aborda a persistência e a luta diária do trabalhador, simbolizando o esforço humano diante de adversidades constantes. 

Não poderia faltar uma regravação de uma música de Raul Seixas. Para Duplo Sentido, o Camisa regravou “Aluga-se”, originalmente gravada por Raul em 1980, porém censurada pela ditadura militar. “Aluga-se” é uma sátira crítica à entrega das riquezas nacionais ao capital estrangeiro, denunciando a subserviência econômica e política do Brasil. 

O álbum termina com uma releitura de “Canalha”, de Walter Franco, cuja versão original foi gravada por ele em 1980. Enquanto a versão original é um rock de andamento lento, mas com uma sonoridade agressiva, a versão do Camisa manteve a agressividade, porém ganhou uma pegada mais rápida e enérgica. Na letra de "Canalha", o eu lírico expressa toda uma dor intensa e inevitável, usando metáforas de batalha para descrever seu sofrimento emocional e existencial profundo.

Camisa de Vênus revisita em Duplo Sentido canções de Walter Franco,
Jards Macalé e Raul Seixas.

Duplo Sentido foi lançado simultaneamente com o single de “Muita Estrela, Pouca Constelação”, que, aliás, foi o único single gerado pelo álbum. O álbum chegou a ter anúncios nos intervalos de programação das emissoras de TV, destacando que era um trabalho de despedida do Camisa de Vênus. A banda baiana partiu para sua última turnê não apenas para promover o álbum duplo, mas também para se despedir dos fãs. 

“Muita Estrela, Pouca Constelação” teve uma modesta execução nas emissoras de rádio, enquanto “O País do Futuro” ganhou videoclipe exibido no Fantástico, na TV Globo. 

Após o lançamento de Duplo Sentido, o Camisa de Vênus partiu em turnê de despedida, encerrando oficialmente suas atividades no final de 1987. Com o fim do Camisa de Vênus, Marcelo Nova seguiu carreira solo, colaborando com Raul Seixas, com quem gravou o álbum A Panela do Diabo, lançado em 21 de agosto de 1989, dois dias antes de Raul falecer. 

Em 1995, o Camisa fez seu primeiro retorno, e, daí em diante, a banda fez vários retornos, alguns deles resultando em novos álbuns, como Plugado! (1995) e Quem É Você? (1996). Após nova separação em 1996, o grupo se reuniu em 2004, 2007 e 2009, esta última marcando uma fase sem Nova, liderada por Eduardo Scott, com a coletânea Mais Vivo do Que Nunca (2011) e disputas judiciais pelo nome da banda. Em 2015, Nova e Robério Santana celebraram 35 anos com a turnê e o álbum Dançando na Lua. Em 2021, o grupo lançou Agulha no Palheiro, consolidando sua relevância no rock nacional.

 

Faixas

Todas as faixas escritas e compostas por Gustavo Mullem, Karl Hummel e Marcelo Nova, exceto onde indicado.

 

Disco 1

Lado A

  1. "Lobo Espiatório"                 
  2. "O País do Futuro" (Marcelo Nova / Robério Santana)
  3. "Ana Beatriz Jackson"                        
  4. "Vôo 985" (Aldo Machado / Gustavo Mullem / Karl Hummel / Marcelo Nova)            
  5. "Após Calipso"                       

Lado B

  1. "Me Dê uma Chance"                        
  2. "Deusa da Minha Cama"                  
  3. "Chamam Isso Rock and Roll"                    

Disco 2

Lado C

  1. "Muita Estrela, Pouca Constelação" (Marcelo Nova / Raul Seixas)             
  2. "O Último Tango"                 
  3. "O Suicídio Parte II" (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)   
  4. "Chuva Inflamável"                            

Lado D

  1. "Enigma" Adelino Moreira 
  2. "Farinha do Desprezo" (José Carlos Capinam / Jards Macalé)      
  3. "A Canção do Martelo (Hammer Song)" (Alex Harvey / Versão: Marcelo Nova)            
  4. "Aluga-se" (Cláudio Roberto / Raul Seixas)
  5. "Canalha" (Walter Franco)

 

Músicos

Camisa de Vênus:

Marcelo Nova: Vocal

Karl Hummel: Guitarra base

Gustavo Mullem: Guitarra solo

Robério Santana: Baixo elétrico

Aldo Machado: Bateria

 

Referências:

Dias de Luta – o rock e o Brasil dos anos 80 – Ricardo Alexandre Luiz, 2013, Arquipélago Editorial, Porto Alegre, Brasil.

O galope do tempo : conversas com André Barcinski / Marcelo Nova e André Barcinski. - São Paulo : Benvirá, 2017.

wikipedia.org


Ouça na íntegra o álbum Duplo Sentido

"País do Futuro" (videoclipe oficial)

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