“Travelling Without Moving” (Sony Soho Square,1996), Jamiroquai
Por Sidney Falcão
Nos anos 1990, enquanto o britpop dominava as paradas do Reino Unido, outra cena ganhava força: o acid jazz, uma fusão vibrante de funk, soul e jazz, guiada por artistas como Brand New Heavies, Incognito e, claro, Jamiroquai. Formada em 1992 por Jason "Jay" Kay, a banda rapidamente se destacou graças à voz singular do vocalista — frequentemente comparada à de Stevie Wonder — e à sua habilidade de canalizar grooves nostálgicos com uma pegada moderna.
O terceiro álbum da banda, Travelling Without Moving (1996), marcou o ápice desse movimento, elevando o Jamiroquai ao status de fenômeno global. Aproveitando o sucesso dos discos anteriores (Emergency on Planet Earth e The Return of the Space Cowboy), o grupo refinou sua sonoridade, criando um trabalho que celebra a música negra dos anos 1970 — especialmente o soul e o funk —, ao mesmo tempo em que abraça elementos contemporâneos, como beats eletrônicos e uma estética visual futurista.
Mais do que um álbum de acid jazz, Travelling Without Moving é um manifesto estilístico e sonoro. Hits como "Virtual Insanity" e "Cosmic Girl" tornaram-se hinos de pista de dança, enquanto faixas mais introspectivas revelam a sofisticação musical da banda. Com Travelling Without Moving, o Jamiroquai transcendeu a cena britânica e consolidou seu espaço no pop global, deixando uma marca indelével na cultura dos anos 1990.
A estrada para Travelling Without Moving
Antes de Travelling Without Moving, o Jamiroquai já havia estabelecido um sólido alicerce. O álbum de estreia, Emergency on Planet Earth (1993), trouxe mensagens ambientais e sociais embaladas por grooves funky, enquanto The Return of the Space Cowboy (1994) refinou a abordagem com canções mais maduras e experimentais. O sucesso desses discos, especialmente na Europa e no Japão, expandiu a base de fãs da banda, abrindo caminho para que o terceiro álbum alcançasse ainda mais reconhecimento.
O título Travelling Without Moving reflete um conceito peculiar: a ideia de explorar novos horizontes sem sair do lugar. Para Jay Kay, um aficionado por carros e aviões, isso evocava tanto sua paixão por velocidade quanto uma metáfora para a jornada introspectiva e musical do álbum. Essa dualidade se manifesta nas letras, que exploram temas como escapismo, alienação urbana e conexões humanas, ao mesmo tempo em que mergulham em um caleidoscópio sonoro que mistura soul, funk, acid jazz e eletrônica.
Nos bastidores, o álbum foi fruto de uma colaboração intensa entre Jay Kay e os membros centrais da banda, especialmente o baixista Stuart Zender e o tecladista Toby Smith. Zender, com suas linhas de baixo precisas e pulsantes, foi crucial para criar a identidade funky do álbum, enquanto Smith contribuiu com harmonias sofisticadas e arranjos complexos, que davam profundidade às faixas. A dinâmica entre eles era quase telepática, resultando em grooves icônicos como os de "Virtual Insanity" e "Cosmic Girl."
A produção aconteceu em estúdios no Reino Unido, com Jay Kay assumindo o papel de visionário, guiando a direção artística e musical. Cada faixa foi minuciosamente trabalhada para equilibrar elementos retrô com uma estética moderna, refletindo a obsessão de Jay Kay por autenticidade e inovação. O resultado foi um álbum que não apenas consolidou o Jamiroquai no cenário internacional, mas também redefiniu o potencial do acid jazz como um estilo pop global.
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Jamiroquai em 1995: período de ascensão. |
“Virtual Insanity” é a faixa de abertura e um manifesto sonoro e visual. Embalada por um groove cativante e linhas de teclado que remetem a Stevie Wonder, "Virtual Insanity" traz uma crítica contundente à alienação tecnológica e à degradação ambiental. Jay Kay questiona o futuro da humanidade em um mundo cada vez mais desconectado das emoções reais. O videoclipe, dirigido por Jonathan Glazer, tornou-se um marco, com seus efeitos visuais inovadores que criam a ilusão de um piso em constante movimento, capturando perfeitamente a sensação de instabilidade que a música sugere.
Com seu ritmo contagiante e influências da disco music dos anos 1970, "Cosmic Girl" é uma das faixas mais dançantes do álbum. A linha de baixo de Stuart Zender e os riffs de guitarra de Simon Katz dialogam com os sintetizadores de Toby Smith, criando um som luxuoso e futurista. A letra celebra uma musa cósmica com charme e leveza, enquanto os arranjos sofisticados mostram a habilidade do Jamiroquai em combinar nostalgia com modernidade.
“Use The Force” destaca a percussão que remete ao samba executado pelo percussionista Sola Akingbola, adicionando uma camada rítmica que eleva a energia do álbum. A música é um hino de empoderamento e motivação, com Jay Kay incentivando os ouvintes a persistirem diante de adversidades. Os grooves complexos e o trabalho de bateria mostram o lado mais orgânico da banda, mantendo a autenticidade de suas raízes funk-jazz.
O álbum toma um rumo mais introspectivo com a balada “Everyday”, explorando o mundano e a busca por significado. Os vocais emocionantes de Jay Kay e a vibração mais suave da música criam uma atmosfera reflexiva e íntima, contrastando com o som otimista e energético usual da banda.
“Alright” é uma celebração pura da vida e do amor. O groove contagiante e os ganchos cativantes da música criam uma energia irresistível, tornando impossível não se mover e curtir. É um hino alegre que deixa o ouvinte se sentindo animado e positivo.
“High Times” é uma jornada psicodélica pelas mentes de Jamiroquai cuja letra traça uma crítica aos danos das drogas, abordando vícios, perda de controle, ciclos destrutivos e a busca por liberdade e equilíbrio. A música mistura grooves funky com paisagens sonoras oníricas, criando uma atmosfera hipnótica e sobrenatural. O videoclipe de “High Times” foi filmado no Rio de Janeiro durante passagem da banda pelo Brasil.
"Drifting Along" reflete sobre a incerteza da vida, explorando a sensação de estar perdido e a aceitação da jornada sem destino. A faixa serena, com infusão de reggae, mostra os vocais suaves de Jay Kay e a capacidade da banda de criar uma atmosfera relaxada, quase meditativa. O groove descontraído e os versos letras introspectivos da música convidam os ouvintes a simplesmente se deixar levar.
A instrumental “Didjerama” explora as influências aborígenes australianas com o uso do didgeridoo, tocado pelo próprio Jay Kay. O resultado é um ritmo hipnótico do instrumento combinado com uma linha de baixo groovy e elementos percussivos, criando uma paisagem sonora única e cativante. É uma prova da versatilidade do didgeridoo e sua capacidade de se misturar perfeitamente com estilos musicais modernos.
Na faixa seguinte, a também instrumental “Didjital Vibrations”, o didgeridoo se faz presente novamente. A faixa é uma paisagem sonora futurista que mistura elementos eletrônicos e orgânicos. “Didjital Vibrations” explora o impacto da era digital, criando uma atmosfera hipnótica e sobrenatural. É uma mistura cativante de sons tradicionais e modernos, mostrando o espírito inovador de Jamiroquai.
O Jamiroquai retoma o ritmo agitado e dançante do álbum com “Traveling Without Moving”, faixa que dá nome ao álbum. Esta faixa contém traz uma linha de baixo simplesmente demolidora, que em alguns momentos, transita pelo funk e pela disco music que, juntamente com os vocais emocionantes de Jay Kay criam uma atmosfera reflexiva, capturando perfeitamente o tema do álbum de exploração interior e viagem espiritual.
Em “You Are My Love”, o Jamiroquai mergulha de corpo e alma no ritmo cheio de balanço da faixa, com direito a uma guitarra cheia de efeitos de wah-wah. Embora dançante, é uma canção de amor sincera que celebra o profundo afeto. Os vocais suaves de Jay Kay e a suave melodia de piano criam uma atmosfera romântica e íntima, tornando-a uma escolha perfeita para dança lenta ou um momento tranquilo de reflexão.
"Spend A Lifetime" encerra o álbum. É uma declaração de amor intensa, expressando o desejo de conexão, carinho e compromisso duradouro do eu lírico com a pessoa amada. O ritmo lento e os versos sincerao da música criam uma atmosfera reflexiva e emocional, enfatizando a importância da conexão humana. O som de orquestra da base instrumental cria uma dramaticidade à canção e valorizam a entrega apaixonada de Jay Kay ao cantar os versos desta canção apaixonada.
O álbum ainda trouxe como faixa bônus, “Do You Know Where You're Coming From”, lançada em maio de 1996 como single. A canção alcançou o 12º lugar da parada de singles do Reino Unido. É uma colaboração de M-Beat e Jamiroquai. Combina melodia cativante e mensagem positiva sobre identidade e autodescoberta.
Além de uma faixa bônus, o álbum contém uma “faixa oculta”, “Funktion”. É uma faixa de dança de alta energia com um groove funky protagonizado pelo som de cow bell que transita do começo ao fim da faixa. A linha de baixo cativante, os metais energéticos e o ritmo otimista criam uma vibração irresistível na pista de dança, tornando-a perfeita para qualquer festa ou celebração.
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Cena do videoclipe de "Virtual Insanity". |
O lançamento de Travelling Without Moving em 1996 catapultou Jamiroquai para o estrelato global. O álbum vendeu mais de 11 milhões de cópias, consolidando-se como o mais bem-sucedido da banda e entrando para o Guinness World Records como o álbum de funk mais vendido da história. O sucesso comercial foi amplamente impulsionado por hits como "Virtual Insanity" e "Cosmic Girl", que alcançaram alta rotação em rádios e dominaram as paradas ao redor do mundo.
No campo dos prêmios, Travelling Without Moving foi amplamente reconhecido. O clipe de "Virtual Insanity" ganhou quatro prêmios no MTV Video Music Awards de 1997, incluindo “Melhor Videoclipe do Ano”, enquanto a faixa levou o Grammy de “Melhor Performance Pop por um Duo ou Grupo com Vocais”. Esses reconhecimentos solidificaram o status do Jamiroquai como referência na música dos anos 1990, ampliando sua base de fãs para além da cena acid jazz.
A recepção crítica foi igualmente positiva. Muitos destacaram a universalidade do álbum, que agradava tanto aos entusiastas do acid jazz quanto ao público pop e amantes do funk setentista. Publicações especializadas elogiaram a habilidade da banda em mesclar influências clássicas e contemporâneas, criando um som sofisticado e acessível. Jay Kay foi comparado a ícones como Stevie Wonder e Curtis Mayfield (1942-1998) por sua abordagem vocal e composicional, enquanto os arranjos de Stuart Zender e Toby Smith foram reconhecidos como essenciais para o caráter distinto do álbum.
O videoclipe de "Virtual Insanity" teve um impacto cultural profundo, ajudando a definir a estética do Jamiroquai. Com seus movimentos ilusórios e design minimalista, o vídeo não apenas conquistou prêmios, mas também tornou-se uma assinatura visual da banda, imortalizando a imagem de Jay Kay dançando em um espaço em constante mutação. A combinação de inovação visual e musical garantiu ao Jamiroquai um lugar na vanguarda da música pop dos anos 1990, enquanto o álbum continua a ser um marco de fusão musical e criatividade audiovisual.
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Jamiroquai no MTV Video Music Awards de 1997, onde a música "Virtual Insanity" levou quatro prêmios, dentre eles "Videoclipe do Ano". |
O sucesso de Travelling Without Moving e a turnê de 1997 marcaram o auge do Jamiroquai, mas também trouxeram à tona tensões internas. Divergências entre Jay Kay e o baixista Stuart Zender culminaram na saída do músico durante a criação do próximo álbum, Synkronized (1999). Rumores apontam que Zender estava insatisfeito com a divisão desigual dos ganhos da banda, alegando que Kay recebia mais do que os demais integrantes.
A saída de Zender foi um golpe significativo para o Jamiroquai, já que ele era considerado fundamental para o groove e a identidade sonora da banda. Isso levou ao descarte de um álbum inteiro gravado, provisoriamente chamado Symphonized, que explorava sons de funk suave e estilos latinos. Jay Kay optou por refazer o projeto, resultando em Synkronized, com uma sonoridade mais moderna, incluindo programação de batidas e novos elementos pop e rock.
A faixa “King for a Day”, presente no álbum, é amplamente vista como um reflexo das tensões entre Kay e Zender, retratando o ex-colega de banda como ganancioso. O episódio marcou uma virada para o Jamiroquai, encerrando uma fase criativa icônica e redefinindo a trajetória do grupo no final dos anos 1990.
Legado de Travelling Without Moving
O impacto de Travelling Without Moving transcende seu sucesso comercial e premiações. O álbum desempenhou um papel crucial na popularização do funk e do acid jazz em mercados globais, especialmente nos Estados Unidos, onde o gênero ainda era visto como nicho. Jay Kay e sua banda conseguiram traduzir influências de artistas como Stevie Wonder e Herbie Hancock em um som fresco, acessível e dançante, inspirando uma nova geração de músicos. Bandas e artistas contemporâneos, como Anderson. Paak, Mark Ronson e Jungle, frequentemente mencionam Jamiroquai como uma referência direta na fusão de soul, funk e elementos eletrônicos.
Culturalmente, o álbum permanece relevante. "Virtual Insanity", com sua crítica à sociedade de consumo e ao impacto ambiental, soa tão atual quanto em 1996, e o icônico videoclipe continua a ser referência em inovações visuais na música. Além disso, Travelling Without Moving ajudou a firmar a identidade visual de Jamiroquai, com o "Buffalo Man" se tornando um símbolo inconfundível da banda.
No conjunto da obra do Jamiroquai, Travelling Without
Moving é amplamente reconhecido como um dos ápices criativos da banda.
Ele encapsula o equilíbrio perfeito entre inovação musical, sofisticação
técnica e letras com uma mensagem poderosa. Mais de duas décadas após seu
lançamento, o álbum ainda é celebrado como um marco de fusão musical e uma
prova da capacidade do Jamiroquai de conectar diferentes eras e estilos
musicais em algo atemporal.
Faixas
- "Virtual Insanity"
- "Cosmic Girl"
- "Use the Force"
- "Everyday"
- "Alright"
- "High Times"
- "Drifting Along"
- "Didjerama" (Instrumental)
- "Didjital Vibrations" (Instrumental)
- "Travelling Without Moving"
- "You Are My Love"
- "Spend a Lifetime"
Jamiroquai:
Jay Kay – vocais
Wallis Buchanan – didjeridoo
Simon Katz – guitarra elétrica
Toby Smith – teclados
Stuart Zender – baixo
Sola Akingbola - percussão
Derrick McKenzie – bateria
Referências:
jamiroquai.com
qobuz.com
wikipedia.org
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