Kick (WEA, 1987), INXS
Em 1987, o mundo da música pop vivia um momento de exuberância e afirmação. A MTV, já consolidada como potência cultural, ditava o ritmo da indústria, amplificando o alcance de artistas visualmente carismáticos e sonoramente arrojados. Era a era das superproduções — videoclipes cinematográficos, arranjos grandiosos e ambições globais. Entre a atitude dos roqueiros da Sunset Strip, como Guns N’ Roses e Aerosmith, e a sofisticação pop de artistas como George Michael (1963-2016) e Prince (1958-2016), o INXS encontrou um ponto de equilíbrio raro — e, com ele, uma brecha para a consagração mundial.
Nesse cenário, o INXS lançava Kick, seu sexto álbum de estúdio, posicionando-se como um dos nomes mais relevantes do pop-rock internacional. Com Kick, o INXS deixou de ser uma banda promissora com boa performance na Austrália e alguma presença no mercado norte-americano para tornar-se uma força global do pop-rock, transitando entre a sensualidade do R&B, a pulsação do funk, o apelo visual do videoclipe e a estrutura grandiosa do rock de arena.
Mas para entender o impacto desse disco, é necessário recuar um pouco e olhar para as origens da banda. O INXS não despontou para o sucesso em 1987. A banda surgiu 1977, em Sydney, Austrália, formado pelos irmãos Farriss — Tim (guitarra), Andrew (teclado e guitarra) e Jon (bateria) — ao lado de Garry Gary Beers (baixo), Kirk Pengilly (guitarra e saxofone) e Michael Hutchence (vocais; 1960-1997). Inicialmente batizado como The Farriss Brothers, o grupo começou tocando em bares, surfando na onda do pub rock australiano, um gênero direto e vibrante que dominava o circuito ao vivo do país. Mas desde cedo havia algo distinto ali: um senso melódico refinado, uma presença de palco magnética e, acima de tudo, um vocalista com carisma de estrela.
Com o tempo, a banda foi refinando seu som — partindo do pós-punk nervoso de seus primeiros álbuns para algo mais polido, sensual e dançante. Shabooh Shoobah (1982) os levou às paradas norte-americanas; The Swing (1984) e, sobretudo, Listen Like Thieves (1985) ampliaram ainda mais seu público global. O single “What You Need” chegou ao Top 5 nos Estados Unidos, pavimentando o caminho para uma aposta mais ousada: um disco que unisse ambição artística e apelo comercial em escala planetária.
Kick é esse ponto de inflexão. É o álbum em que o INXS
abandonou as hesitações e assumiu, sem disfarces, seu desejo de grandeza. A
capa já sinalizava essa mudança: visual impactante, atitude pop, e o vocalista
Michael Hutchence assumindo o centro da cena como ícone sexual e rockstar definitivo
dos anos 1980. Musicalmente, o grupo apresentava ali a síntese de tudo o que
vinha construindo: riffs funky, grooves envolventes, refrães grudentos e uma
produção elegante, cortesia do experiente Chris Thomas (Beatles, Pink Floyd,
Roxy Music, Sex Pistols, Pretenders entre outros), que já havia trabalhado com
eles no disco anterior.
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INXS no auge: Michael Hutchence, Garry Gary, Kirk Pengilly, Jon Farriss, Tim Farriss, Andrew Farriss. |
Uma viagem faixa a faixa por Kick
Desde os primeiros segundos de “Guns in the Sky”, o álbum anuncia sua chegada com uma batida sintética seca, marcial, pontuada por vocais entre o gemido e o grito. Michael Hutchence, com sua entrega cool e ofegante, parece alternar entre um protesto e um flerte. Há um clima de tensão controlada, que traduz bem o espírito da faixa: uma crítica cifrada à corrida armamentista, mascarada por um groove irresistível. A guitarra minimalista e a explosão bluesy do solo final completam o quadro com precisão: trata-se de um pop rock de camadas, que seduz tanto pela forma quanto pelo conteúdo.
Na sequência, “New Sensation” é a faixa que realmente abre as portas da festa. O riff de guitarra, emoldurado por efeitos de chorus típicos da época, remete diretamente ao universo funk-pop de Prince e à exuberância sintética do chamado Minneapolis Sound. A estrutura é simples, mas eficaz: sopros digitais, backing vocals gospel processados e o vocal áspero de Hutchence criam uma celebração sonora da euforia oitentista. É música para dançar, sim, mas sem abrir mão de uma assinatura autoral que diferencia o INXS de tantos outros aspirantes ao estrelato da época.
“Devil Inside” muda o tom. A batida é mais contida, com um riff de guitarra em loop que evoca uma atmosfera quase ritualística. Hutchence soa mais sombrio, menos expansivo, como se narrasse uma tentação inevitável. A faixa se desenvolve num crescendo hipnótico, mas talvez estenda-se mais do que deveria, sinalizando um pequeno excesso num álbum que, em geral, aposta na concisão como aliada da eficácia.
O grande trunfo de Kick, contudo, chega na quarta faixa. “Need You Tonight” é, com alguma tranquilidade, o momento em que a banda atinge sua síntese ideal entre forma, conteúdo e apelo popular. A canção é construída sobre um riff simples, mas de impacto imediato, composto em poucos minutos — segundo a lenda, enquanto um dos integrantes esperava por um táxi. A batida eletrônica, a influência de Prince, o flerte com o funk branco e a sensualidade implícita na voz de Hutchence criam um clima de tensão erótica irresistível. O fato de a canção ter sido posteriormente (e “acidentalmente”) homenageada por Dua Lipa em “Break My Heart” atesta o poder atemporal dessa fórmula.
“Mediate” funciona como uma extensão natural de “Need You Tonight”, costurada de forma tão orgânica que ambas costumam ser executadas como um bloco único. O clima muda: a batida continua eletrônica, mas agora é minimalista, quase fria. Hutchence recita uma sequência de palavras rimadas em ritmo constante, como um mantra pós-moderno. A letra — quase um poema beat — constrói imagens fragmentadas, que formam um retrato caleidoscópico da cultura contemporânea.
A única regravação do disco, “The Loved One”, revisita um clássico do rock australiano dos anos 1960. A escolha não é aleatória: o INXS, ao recuperar essa herança, reforça seu pertencimento à tradição musical de seu país, ao mesmo tempo em que a atualiza com uma pegada vigorosa, quase proto-britpop. A versão da banda é musculosa, segura e cheia de bravado — transformando uma canção de estrutura simples em um hino com contornos modernos.
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Contracapa e capa do álbum Kick, uma criação do designer gráfico britânico Nick Egan. |
“Wild Life” é, talvez, o ponto menos memorável do álbum. Trata-se de uma faixa funcional, energética, com todos os elementos típicos do som do INXS — riffs em staccato, groove dançante, vocais carregados de atitude — mas que, em comparação com os grandes momentos do disco, acaba parecendo genérica. Ainda assim, cumpre bem seu papel de manter o ritmo da audição, funcionando como um respiro antes da próxima virada dramática.
Essa virada atende pelo nome de “Never Tear Us Apart”. Balada épica, de arranjo cinematográfico, a faixa mescla cordas sintetizadas, piano melancólico e explosões de bateria que remetem ao Queen da fase final. Mas o que a torna memorável é, sobretudo, a entrega emocional de Hutchence. Sua interpretação carrega uma vulnerabilidade rara no álbum, um contraste marcante com o hedonismo das faixas anteriores. A canção ganhou contornos ainda mais simbólicos após a morte do vocalista, tornando-se uma espécie de elegia involuntária. É o coração pulsante do disco.
“Mystify” retoma o clima de celebração, mas com uma pegada diferente. A introdução com palmas e piano evoca um ambiente mais intimista, como um bar esfumaçado no centro da cidade. A canção se desenvolve com leveza e elegância, sem os arroubos de produção das faixas anteriores. Não chegou a ter o mesmo sucesso comercial de outros singles, mas conquistou ao longo do tempo um status cult entre os fãs — algo que frequentemente ocorre com as canções que crescem no silêncio dos álbuns.
A faixa-título, “Kick”, sintetiza em poucos minutos a proposta estética do disco: um rock vibrante, cheio de balanço, com sopros estridentes, baixo pulsante e vocais intensos. A letra, ao mesmo tempo cínica e esperançosa, gira em torno da imagem do chute como metáfora existencial: ora se chuta, ora se é chutado. A referência direta ao rock'n'roll dos anos 1950 (com sua levada dançante e saxofone em brasa) aproxima o INXS de suas raízes, sem abrir mão do verniz moderno.
Na reta final, “Calling All Nations” tenta fazer ecoar a utopia globalizante pós-Live Aid. Seu refrão, que convida à festa como solução para os problemas do mundo, pode soar ingênuo, mas carrega a energia coletiva que marcava muitos dos discursos artísticos da década. A sonoridade funk-rock, com guitarras cheias de reverb e batidas precisas, garante coesão ao conjunto, mesmo sem o impacto dos singles anteriores.
Por fim, “Tiny Daggers” encerra o álbum com uma guinada inesperada. Com sua levada mais roots, quase Springsteeniana, a faixa soa como um road song americana, feita para ser ouvida em alta velocidade na estrada. Piano em destaque, riffs diretos, bateria seca — tudo converge para uma despedida vigorosa, embora mais discreta, como se o álbum deixasse a pista de dança para voltar ao asfalto.
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Michael Hutchence em cena do videoclipe da canção "Never Tears Us Apart". |
Em uma época em que o videoclipe era quase tão importante quanto a música em si, o INXS soube explorar com inteligência os recursos audiovisuais. Os clipes de Kick — especialmente o de “Need You Tonight” com sua técnica de rotoscopia e cortes rápidos — ajudaram a fixar a imagem da banda no imaginário popular. Michael Hutchence, com sua beleza física e presença de palco, encarnava um ideal de frontman que remetia a Mick Jagger e Jim Morrison, mas com uma aura própria, mais sensível e contemporânea.
Importa destacar que o sucesso da banda não se deve apenas ao
magnetismo de seu vocalista. Apesar de inevitavelmente ser o centro das
atenções, Hutchence fez questão de preservar a imagem do INXS como uma banda —
e não como um cantor solo com grupo de apoio. Essa decisão, embora tenha
custado a capa de uma edição da Rolling Stone, consolidou a unidade do grupo e
garantiu uma longevidade artística que resistiria até o fim trágico do
vocalista, em 1997.
O dado mais curioso da história de Kick é que ele quase não foi lançado. As gravadoras, temendo a mistura de gêneros proposta pelo disco, ofereceram à banda um milhão de dólares para que regravassem o álbum com um perfil mais "seguro". A recusa veio com confiança: acreditando no potencial do trabalho, a banda e seu empresário bancaram por conta própria uma turnê por universidades norte-americanas — e foi justamente no circuito alternativo que o disco começou a ganhar tração.
O tempo mostrou que estavam certos. Kick vendeu mais de 20
milhões de cópias em todo o mundo, atingiu o terceiro lugar na parada de álbuns
da Billboard e levou “Need You Tonight” ao topo do Hot 100. A recepção crítica,
inicialmente morna em alguns mercados, foi rapidamente revista diante do
impacto cultural e comercial do disco.
Após o sucesso monumental de Kick, o INXS enfrentava o
desafio de manter o alto padrão. Em 1990, lançaram X, seu sétimo álbum de
estúdio, mais uma vez com produção de Chris Thomas. Gravado em Sydney e
Londres, o disco buscava dar continuidade à fórmula vencedora do antecessor,
equilibrando elementos de rock, pop e funk com apelo comercial. Embora não
tenha repetido o impacto do antecessor, vendeu mais de 5 milhões de cópias e
consolidou o sucesso global do INXS. Hits como “Suicide Blonde” e “Disappear”
mantiveram a banda nas paradas, com esta última sendo seu último grande êxito
nos EUA. O álbum mostrou um grupo maduro, com Michael Hutchence em seu auge
vocal. A turnê mundial reafirmou sua força ao vivo. X encerrou a fase mais
brilhante da carreira do INXS.
Faixas
Todas as faixas foram escritas por
Andrew Farriss e Michael Hutchence , exceto onde indicado.
Lado 1
- "Guns in the Sky"
- "New Sensation"
- "Devil Inside"
- "Need You Tonight"
- "Mediate"
- "The Loved One" (Gerry Humphries - Rob Lovett - Ian Clyne)
Lado 2
- "Wild Life"
- "Never Tear Us Apart"
- "Mystify"
- "Kick"
- "Calling All Nations"
- "Tiny Daggers"
INXS:
Michael Hutchence – vocal
principal, vocal de apoio
Andrew Farriss – teclados,
guitarras
Tim Farriss – guitarras
Kirk Pengilly – guitarras,
saxofone, vocais de apoio
Garry Gary Beers – baixo, vocais
de apoio
Jon Farriss – bateria, percussão,
vocais de apoio
Referências:
classicpopmag.com
wikipedia.org
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