“Essa Boneca Tem Manual” (Sony Music, 2004), Vanessa da Mata
No início dos anos 2000, a música brasileira atravessava um período de luto com a morte precoce de Cássia Eller, em 2001, aos 39 anos, deixando um vazio irreparável. Contudo, a roda da vida continuava girando, e a música brasileira seguiu em frente. As vozes femininas consagradas nos anos 1990, como Marisa Monte, Adriana Calcanhotto e Zélia Duncan, consolidavam seus legados, explorando novas sonoridades e reafirmando sua relevância na MPB contemporânea.
Enquanto isso, aquele começo do novo milênio trouxe o frescor de uma nova geração de intérpretes. Vozes como Maria Rita, Ana Carolina, Roberta Sá e Fernanda Porto despontaram, cada uma com sua identidade e contribuições, revitalizando o gênero com energia e inovação. Nesse cenário feminino diversificado da MPB contemporânea, começava a despontar Vanessa da Mata, cuja presença representava não apenas continuidade, mas também transformação em uma tradição que se renova incessantemente.
Mato-grossense da cidade de Alto da Graça, Vanessa da Mata nasceu em 10 de fevereiro de 1976. Ela carrega em sua origem uma pluralidade que reflete a diversidade da própria música brasileira. Com ascendência judaica, italiana, portuguesa, negra e indígena, sua trajetória parece destinada à confluência de sons e histórias. Aos 14 anos, ao mudou-se sozinha para um pensionato em Uberlândia, Minas Gerais, para cursar o ensino médio técnico federal. Em paralelo aos estudos, a veia musical começou a pulsar: fez suas primeiras apresentações em bares de Uberlândia, em 1991.
O desejo inicial de seguir a medicina foi logo substituído por sua paixão pela música. Em 1992, após concluir o ensino médio, Vanessa rumou para São Paulo, onde integrou a banda feminina de reggae Shalla-Ball. O ponto de virada veio em 1997, ao conhecer Chico César, com quem compôs a emblemática “A Força Que Nunca Seca”. A música, gravada por Maria Bethânia em 1999 e escolhida como título de seu álbum, tornou-se um marco na carreira de Vanessa. A mesma composição ganhou vida na voz de Chico César, coautor da canção, consolidando-se como um elo entre gerações da MPB.
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Encontro com Chico César no final dos anos 1990 foi o ponto de virada na carreira de Vanessa da Mata. |
O sucesso do primeiro álbum impulsionou Vanessa da Mata a criar um segundo trabalho, agora com a produção do lendário Liminha, enquanto ela mesma assumia a co-produção. Juntos, moldaram uma sonoridade mais pop, que ampliou seu alcance.
Lançado em 3 de fevereiro de 2004, Essa Boneca Tem Manual, segundo álbum solo de Vanessa da Mata, abre com “Ainda Bem”, uma balada romântica que irradia gratidão e celebra a sorte de encontrar um grande amor. A canção transmite felicidade e a sensação de sorte por ter encontrado alguém tão especial: “Ainda bem / Que você vive comigo / Porque senão / Como seria esta vida?”.
Na sequência, Vanessa faz uma releitura de “Eu Sou Neguinha?”, de Caetano Veloso. A canção, já gravada pelo próprio cantor nos anos 1980, aborda questões profundas de identidade, raça e autoestima, desafiando os estereótipos raciais com versos ousados. A letra se torna um grito de resistência, celebrando a diversidade e questionando padrões impostos.
“Eu Quero Enfeitar Você” é uma balada pop suave, com violão em destaque. Aqui, o eu lírico se entrega ao prazer do amor, valorizando os momentos simples, mas cheios de afeto. A melancólica “Música” faz uma reflexão sobre a dor da separação, onde o eu lírico faz da música uma espécie de válvula de escape, aliviando a tristeza e a saudade do amor que acabou.
Com uma batida pop percussiva envolta em loops eletrônicos, a faixa-título mergulha na complexidade feminina e na incessante busca por identidade em um mundo que, muitas vezes, impõe estereótipos machistas.
Aí, Ai, Ai... se destaca como a principal faixa do álbum, com sua melodia cativante e versos luminosos, nos quais uma mulher apaixonada se entrega à plenitude do amor, irradiando felicidade. Já “Joãozinho” narra a luta de uma mulher diante da pressão estética sobre seus cabelos crespos, transformando-se em um hino de empoderamento e autoestima para a mulher negra. Em “Ela X Ele Na Cidade Sem Fim” os versos abordam a desconexão emocional entre duas pessoas que, apesar de seus esforços, não conseguem se amar genuinamente.
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Vanessa da Mata em cena do vídeoclipe de "Ai,Ai,Ai...". |
“História de Uma Gata” nasceu da adaptação de Os Saltimbancos, peça infantil de 1977, que reinterpreta a história de Os Músicos de Bremen dos Irmãos Grimm. Originalmente baseada na obra italiana I Musicanti, a canção ganhou notoriedade em 1981, com a versão do filme Os Saltimbancos Trapalhões, interpretada por Lucinha Lins. Seu sucesso transcendeu décadas, sendo regravada por Vanessa da Mata em 2003, que manteve a essência dos arranjos originais. A música, repleta de simbolismo e melodia encantadora, reflete a capacidade da arte de atravessar gerações e continuar cativando o público.
“Não Chore, Homem” é um grito de libertação e coragem, em que a mulher, cansada de ser negligenciada, decide romper com a relação. Seus versos, marcados por um toque de ironia e resoluta determinação, revelam o desejo de redescobrir o amor, mas agora com mais cuidado e autoafirmação.
“Vem”, em contrapartida, é uma canção de reconciliação e reencontro, onde a suavidade da voz de Vanessa dialoga com o violão, trazendo uma atmosfera de paixão renovada. O álbum chega ao fim com “Zé”, uma canção em que uma mulher busca se livrar do amor opressor e castrador de um sujeito que dá nome à música.
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Detalhe do encaarte do álbum Essa Mulher Tem Manual. |
Além de “Ai, Ai, Ai...”, outras faixas também conquistaram o público, como “Ainda Bem”, presente na trilha sonora de Pé na Jaca (2006), “Música” e a regravação de “Eu Sou Neguinha?”, que marcou presença na novela A Lua me Disse (2005), ambas as novelas produzidas pela TV Globo. O êxito dessas canções impulsionou o álbum a vender 40 mil cópias, levando Vanessa da Mata a conquistar o cobiçado disco de ouro, consolidando sua carreira no cenário musical brasileiro.
Depois do sucesso
alcançado por Essa Boneca Tem Manual, Vanessa da Mata lançou em
2007 o terceiro álbum, Sim, um trabalho eclético que mistura
diversos gêneros musicais como carimbó, pop, bolero e samba. Gravado em
diferentes países, com produtores renomados, Sim aborda temas
como amor e meio ambiente, também presentes em Essa Boneca Tem Manual.
Sim foi um sucesso comercial e crítico, rendendo à Vanessa da
Mata diversos prêmios e reconhecimento internacional.
Lista de
Faixas
Todas as
faixas escritas e compostas por Liminha e Vanessa da Mata, exceto onde
indicado.
1."Ainda Bem"
2."Eu Sou Neguinha?" (Caetano Veloso)
3."Eu Quero Enfeitar Você"
4."Música"
5."Essa Boneca Tem Manual" (V. da Mata)
6."Ai, Ai, Ai..."
7."Joãozinho" (V. da Mata)
8."Ela X Ele Na Cidade Sem Fim” (V. da Mata)
9."História de uma Gata" (Chico Buarque - Luis
Bacalov - Sergio Bardotti)
10."Não Chore, Homem" (V. da Mata)
11."Vem" (V. da Mata)
12."Zé"
Referências:
Folha de S. Paulo, Ilustrada, sexta-feira, 01 de outubro de 2004
wikipedia.org
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