“A Love Supreme” (Impulse!, 1965), John Coltrane
John Coltrane (1926-1967) já era uma figura consagrada no universo do jazz quando, em 1964, registrou A Love Supreme. Com uma carreira que passou pelas orquestras de gigantes como Miles Davis (1926-1991) e Thelonious Monk (1917-1982), Coltrane era reconhecido por sua habilidade técnica e pela busca constante de algo mais profundo e autêntico dentro da música. No entanto, o álbum que ele criou naquele ano representaria uma transição definitiva em sua trajetória, uma redefinição não apenas da sua sonoridade, mas também do próprio conceito de espiritualidade musical. A Love Supreme nasceu de uma transformação interna que viria a marcar para sempre a história do jazz e da música em geral: a superação de um vício, a redenção espiritual e o encontro com uma nova forma de expressão.
Coltrane, que no final da década de 1950 passara por um período de intensos desafios pessoais e profissionais, encontrou em sua recuperação do vício em heroína uma espécie de epifania. Ele descreveu essa experiência como uma revelação, um despertar que o fez enxergar a música como um canal para a expressão de sua fé, como uma oração que poderia conectar o humano ao divino. A Love Supreme foi, portanto, mais do que uma obra de jazz; foi uma meditação sonora, um esforço para comunicar a experiência do divino através de uma música que transcendia as formas tradicionais do gênero.
A mudança de Coltrane para uma fase mais espiritual não foi repentina. Ela estava, na verdade, profundamente enraizada em sua jornada pessoal e musical. A transição de um músico que inicialmente se destacara no universo do jazz modal para um explorador do free jazz não se deu apenas por razões estéticas, mas também por questões existenciais. Coltrane acreditava que a música era uma forma de prece, uma maneira de alcançar o transcendental e a transcendência pessoal. Esse impulso o levou a abraçar o jazz modal e, em seguida, o free jazz, dois movimentos que o ajudaram a afastar-se das convenções do jazz tradicional.
Seu trabalho com Miles Davis, especialmente no clássico Kind of Blue (1959), marcou o início de sua exploração do jazz modal. No entanto, foi após o período conturbado de sua luta contra o vício e a sua recuperação que Coltrane encontrou um novo caminho. Sua interpretação do saxofone se transformou, sua técnica e seu som passaram a expressar não apenas habilidade, mas uma mensagem mais profunda e universal, refletindo sua busca interior. Nesse contexto, A Love Supreme emergiu como o ápice de sua busca por uma conexão divina através da música.
O conceito por trás de A Love Supreme é, por si só, uma obra-prima. Coltrane estruturou o álbum como uma suíte em quatro movimentos, cada um representando uma parte diferente de sua jornada espiritual. A primeira parte, "Acknowledgement" ("Reconhecimento"), funciona como uma introdução ao tema central do álbum, com seu famoso motivo de quatro notas no baixo de Jimmy Garrison (1934-1976). Essa melodia se torna um mantra, repetido e expandido ao longo de toda a suíte. O saxofone de Coltrane entra suavemente, evocando um clima de oração, como se fosse uma invocação que estabelece o tom para o restante da obra. A repetição da frase "A Love Supreme", tanto vocalizada quanto tocada no saxofone, torna-se um símbolo de devoção e gratidão, conferindo à música uma sensação de solenidade e reverência.
Bill Evans, Miles Davis, Cannonball Adderley e John Coltrane gravandono Columbia 30th Street Studio, época em que Coltrane integrava o sexteto de Davis. |
Em "Pursuance" ("Persecução"), o terceiro movimento, o ritmo se torna mais agitado e urgente. A bateria de Elvin Jones, com sua complexidade e ritmo incansável, confere à música uma energia elétrica, como se a busca por iluminação fosse uma corrida em direção a algo sublime e inatingível. A improvisação de Coltrane neste movimento se torna mais ousada, atravessando passagens de caos e liberdade. Este é o momento em que o músico parece se libertar das amarras das convenções, buscando uma linguagem mais livre, mais caótica, como um reflexo da turbulência emocional que acompanha a busca espiritual.
Finalmente, "Psalm" ("Salmo") fecha a suíte de forma
silenciosa e contemplativa. O saxofone de Coltrane, neste movimento, recita uma
melodia como se fosse um poema. Cada frase, como um verso sacro, é carregada de
significado espiritual. Não há improvisação neste movimento; tudo é minimalista
e reverente, criando uma atmosfera quase litúrgica. O movimento final é um
clímax de entrega, um ato de rendição absoluta, onde a música se torna uma
oração pura, uma expressão direta de fé.
Embora a visão espiritual de Coltrane tenha sido fundamental para A Love Supreme, o quarteto que o acompanhou teve um papel essencial na criação da obra. McCoy Tyner (1938-2020), com seu piano expressivo e cheio de ressonâncias emocionais, trouxe um equilíbrio perfeito entre intensidade e serenidade, criando uma base sólida para as explorações de Coltrane. O baixo de Jimmy Garrison, com seu padrão de quatro notas repetido, fundamentou o andamento da música, estabelecendo uma base de meditação e continuidade. Já Elvin Jones (1927-2004), com sua bateria incansável, gerou a energia necessária para que a música se movesse em direções inesperadas, com sua habilidade de navegar entre o ritmo e a improvisação.
O papel de Coltrane, como líder e motor criativo do quarteto, foi o de canalizar essas energias. Sua abordagem ao saxofone foi revolucionária, não apenas pela técnica, mas pela profundidade emocional e espiritual que ele infundiu em cada nota tocada. O timbre de seu saxofone se tornou um dos mais emblemáticos da história do jazz, com sua capacidade de transmitir emoções humanas universais, de momentos de dúvida e desespero até a certeza inabalável da fé.
Quarteto supremo: Elvin Jones (bateria), McCoy Tyner (piano), John Coltrane (saxofone) e Jimmy Garrison (baixo acústico) |
Uma das características mais marcantes de A Love Supreme é a fusão entre o modal jazz, que Coltrane começou a explorar com Miles Davis, e o free jazz, um movimento musical que buscava a liberdade total na improvisação e na estrutura. A música de Coltrane, por meio de seus modos repetitivos e harmônicos, cria um espaço meditativo, quase hipnótico, que permite ao ouvinte se perder nas camadas sonoras. Ao mesmo tempo, a improvisação livre e o ritmo impulsivo de Elvin Jones conferem à música uma sensação de imediata espontaneidade, como se cada momento fosse novo e único.
Essa combinação de estrutura e liberdade não apenas caracteriza o álbum, mas também lhe confere uma energia única e visceral. Em A Love Supreme, a música não se limita a uma expressão técnica; ela se torna uma conversa direta com o ouvinte, uma linguagem que transcende as palavras e fala diretamente à alma.
Quando A Love Supreme foi lançado, ele não foi apenas um sucesso de crítica, mas também um marco histórico na música. O álbum foi aclamado como uma das maiores realizações de Coltrane, solidificando sua posição como um dos maiores músicos de jazz de todos os tempos. No entanto, o impacto de A Love Supreme foi muito além do jazz. Sua influência se estendeu a gêneros tão diversos quanto o hip-hop, a música clássica e outros gêneros experimentais. O uso do álbum por produtores como J Dilla e Madlib, nas décadas seguintes, atesta o quanto sua energia espiritual e técnica permeou outras formas musicais.
A obra também reverberou nas gerações seguintes de músicos, especialmente aqueles que buscavam formas mais profundas e espirituais de expressão musical. A Love Supreme não era apenas um álbum; era um testamento de que a música pode, de fato, ser um veículo para a transcendência.
Em última análise, A Love Supreme é muito mais
do que um álbum de jazz. É uma expressão da busca humana pela verdade e pela
conexão espiritual, uma obra que transcende as barreiras do tempo e do gênero.
Coltrane, com seu quarteto, não apenas criou uma obra-prima musical, mas também
capturou a essência da experiência espiritual humana, transformando a música em
uma forma de prece e contemplação. O legado de A Love Supreme
perdura até hoje, tanto por sua inovação musical quanto pela profundidade
emocional e espiritual que emana de cada nota tocada. É um dos maiores testemunhos
da capacidade da música de alcançar o divino e de tocar as partes mais
profundas da alma humana.
Faixas
Lado 1
Parte 1: “Acknowledgement”
Parte 2: “Resolution”
Lado 2
Parte 3: “Pursuance”
Parte 4: “Psalm”
The John Coltrane Quartet
John Coltrane (saxofone tenor e
maestro), McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo acústico) e Elvin
Jones (bateria)
Referências:
Revista Bizz – maio/1995 –
Edição 118 – Editora Abril
everythingjazz.com
thecoltranehome.org
Ouça na íntegra o álbum A Love Supreme
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