“Elis & Tom” (Philips, 1974), Elis Regina e Tom Jobim
Por Sidney Falcão
O ano era 1974. Elis Regina (1945-1982), já era uma artista consagrada e completava dez anos de contrato com a gravadora Philips. O então presidente da companhia, André Midani (1932-2019), quis saber de Elis, qual presente ela queria ganhar da gravadora pelos seus dez anos de contrato com a empresa. Sem pensar duas vezes, Elis respondeu que era gravar um disco com Tom Jobim (1927-1994). Talvez um artista respondesse um carro importado, uma viagem especial ou casa luxuosa. Mas Elis foi diferente, queria gravar um disco com um dos criadores da bossa nova.
Segundo César Camargo Mariano, marido de Elis na época, a cantora nutria há algum tempo o desejo de gravar um disco apenas com canções de Tom Jobim. Esse desejo nasceu após a cantora ouvir o álbum Por Toda A Minha Vida, gravado pela cantora Lenita Bruno (1926-1987) em 1959, e que trazia apenas canções de Tom Jobim compostas em parceria com Vinícius de Moraes (1913-1980). O álbum era ouvido com frequência por Elis e César, alimentando ainda mais o desejo da artista gaúcha em gravar um disco com repertório de e com Jobim.
No entanto, havia um problema: a distância. Tom Jobim morava nos Estados Unidos. Há algum tempo, Tom Jobim havia construído uma bem sucedida carreira internacional após gravar um disco com Frank Sinatra (1915-1998) em 1967. Antes disso, a bossa nova já havia invadido o mercado musical americano no começo dos anos 1960.
Coube ao empresário de Elis Regina, Roberto de Oliveira, estabelecer o contato e promover o encontro dos dois para realizar o projeto. Tom Jobim aceitou gravar o disco, na condição de que fosse gravado em Los Angeles, nos Estados Unidos. Para a produção do álbum, foi convocado Aloysio de Oliveira (1914-1995), experiente produtor, amigo de Jobim e que dentre tantos discos que produziu estava o antológico Chega de Saudade (1959), de João Gilberto (1931-2019), obra-prima da bossa nova.
Em fevereiro de 1974, Elis Regina, César Camargo Mariano, Roberto de Oliveira, Aloysio de Oliveira, a banda de Elis e uma equipe da TV Bandeirantes embarcaram num voo rumo aos Estados Unidos. O disco seria gravado nos estúdios da MGM, em Los Angeles.
No começo das gravações, houve momentos de tensão entre Tom Jobim e Elis Regina. A cantora gaúcha queria que César Camargo Mariano fosse o arranjador das canções do disco, mas Jobim discordava completamente. Ele preferia arranjadores mais experientes e sofisticados, como o alemão Claus Ogerman (1930-2016) ou o americano Nelson Riddle (1921-1985), profissionais vinculados ao jazz e que já haviam trabalhado em discos de bossa nova para o mercado americano. Por sorte, nenhum daqueles arranjadores estavam disponíveis naquele momento, e Tom Jobim teve que aceitar a contragosto a opção de Elis. E não apenas isso, Jobim ainda teve que aceitar a banda de Elis (com a qual ele também discordava, preferia músicos americanos) e o piano elétrico de Camargo, que ele achava um acinte. As gravações do disco ocorreram entre 22 de fevereiro e 9 de março de 1974. Em meados daquele ano, o disco já estava chegando às lojas.
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| Aloysio de Oliveira, Tom Jobim, César Camargo Mariano e Elis Regina em Los Angeles. |
Intitulado simplesmente Elis & Tom, o álbum é composto de catorze faixas, reunindo regravações de canções antigas de Jobim, dentre elas “Modinha”, composta por Tom e Vinícius antes da bossa nova, e outras até então mais recentes como “Águas de Março”. César Camargo Mariano escreveu todos os arranjos, exceto os da faixa “Modinha”, a única música totalmente arranjada por Tom Jobim.
Elis & Tom apresenta uma variedade de estilos musicais, desde bossa nova até samba-canção e jazz, refletindo a diversidade e riqueza da música popular brasileira. A voz marcante de Elis Regina e a genialidade de Tom Jobim como compositor e arranjador são evidentes em cada faixa, com interpretações emotivas e arranjos refinados.
O álbum transita entre momentos de melancolia e otimismo, capturando a complexidade das relações humanas e a beleza efêmera da vida. As canções exploram temas profundos como amor, solidão, esperança, reconciliação e nostalgia, utilizando metáforas da natureza e experiências cotidianas para transmitir emoções universais.
O álbum Elis & Tom abre com a antológica “Águas de Março”, canção gravada antes por Jobim, no compacto Disco de Bolso - o Tom de Antônio Carlos Jobim e o Tal de João Bosco, lançado como brinde no jornal O Pasquim. Depois a canção foi incluída no álbum Matita Perê, lançado por Jobim em 1972. Naquele mesmo ano, Elis Regina a gravou no álbum Elis.
Apesar das mais diversas regravações, a versão de “Águas de Março” presente no álbum Elis & Tom ainda é imbatível. Tudo funciona muito bem nela, desde a agradabilíssima base instrumental ao dueto magistral de Elis e Tom, em que Elis canta de forma descontraída na reta final da música. A letra da canção descreve elementos da natureza e do cotidiano, usando metáforas para transmitir sensações e emoções. Fala sobre vida, morte, desafios e momentos de solidão, com ênfase na água como símbolo de renovação e esperança. A repetição da frase "São as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração" reforça a ideia de renascimento e novas oportunidades.
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| Tom Jobim foi quem gravou pela primeira vez "Águas de Março", que aparece no Disco de Bolso - o Tom de Antônio Carlos Jobim e o Tal de João Bosco, em 1972. |
“Pois É” é uma bossa nova lenta e com uma sutil inclinação para o samba-canção, cuja letra retrata o lamento e a dor de um término amoroso, expressando a dificuldade em aceitar o fim e lidar com a solidão: “Enfim / Hoje, na solidão ainda custo / A entender como o amor foi tão injusto / Pra quem só lhe foi dedicação”. Os versos ainda refletem sobre a decepção e a sensação de injustiça diante do desfecho do relacionamento, destacando a impossibilidade de esconder a dor e a dificuldade em seguir adiante.
“Só Tinha de Ser Com Você” aparece em Elis & Tom numa versão simples e sofisticada, e com um toque de modernidade graças ao piano elétrico de César Camargo Mariano. Os arranjos minimalistas e refinados servem de embalagem sofisticada para uma Elis que expressa a profundidade do amor entre duas pessoas e a conexão única e recíproca entre eles, simbolizada pela cor azul. A música celebra a descoberta e a devoção mútua, destacando a inevitabilidade desse amor verdadeiro.
A faixa seguinte, “Modinha”, é a única faixa do disco inteiramente arranjada por Tom Jobim. A canção já havia sido gravada por Elizeth Cardoso em 1958 para o álbum Canção do Amor Demais, trabalho que prenunciou a bossa nova. O naipe de cordas melancólico nesta canção reforça uma interpretação dramática empregada por Elis, que ao final da canção, parece esboçar um choro. Em “Triste”, apesar do título, o ritmo bossa nova é alegre, leve, ameno, um tanto quanto solar. Merece destaque a guitarra dedilhada ao final da canção, dando um toque de modernidade à bossa nova.
Na reta final do lado 1 do álbum, o clássico da bossa nova, “Corcovado”, é uma declaração de amor profundo e inevitável: “E eu que era triste / Descrente deste mundo / Ao encontrar você, eu conheci / O que é felicidade, meu amor”. Acompanhada apenas do piano de Tom Jobim, Elis canta em “O Que Tinha de Ser” sobre a descoberta e a importância do amor verdadeiro. A música destaca a sensação de completude ao encontrar a última esperança e a ligação profunda com o amado. Celebra a chegada desse amor, transformando suas vidas de forma essencial e inevitável, ressaltando a beleza do destino.
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| Tom Jobim e Elis Regina em Los Angeles. |
“Retrato em Branco e Preto” abre o lado 2 de Elis & Tom, trazendo Elis Regina cantando as dores do amor não correspondido, tendo como acompanhamento uma orquestra e o piano de Tom Jobim, que dão à canção uma grande carga dramática compatível à melancolia dos versos.
Após à melancolia da faixa anterior, um pouco de leveza e otimismo com “Brigas Nunca Mais”, uma bossa nova que ressalta o valor da reconciliação e da harmonia numa relação conjugal. Destaque para o piano elétrico de César Camargo Mariano tocando notas que parecem insinuar “Águas de Março”.
O clima de tristeza e melancolia retorna com “Por Toda A Minha Vida”, onde Elis, numa interpretação sofrida, realçada pela orquestra que a acompanha, canta sobre o juramento do amor eterno, comprometido e entregue ao ser amado. “Fotografia” evoca uma atmosfera de romance e nostalgia, capturando a beleza e a brevidade desses momentos compartilhados.
Elis e Tom voltam a fazer um dueto na faixa “Soneto da Separação”, talvez a canção mais triste do disco. Os versos tratam sobre a transformação abrupta de uma relação de amor e a rápida mudança de sentimentos que pode ocorrer numa separação, mostrando como algo que era tão feliz e pleno, se transforma em tristeza e solidão.
“Chovendo na Roseira” é uma linda canção que transmite uma atmosfera de contemplação e admiração pela vida simples e pela beleza da natureza, seja através dos versos escritos por Tom Jobim e tão bem cantados por Elis Regina, seja pelos arranjos muito bem elaborados por César Camargo Mariano.
Elis & Tom fecha com a balada jazzística “Inútil Paisagem”. O piano de Tom faz o pano de fundo para Elis Regina cantar versos em que o eu lírico expressa seu sentimento de solidão e desespero, questionando o propósito de contemplar a beleza da natureza sem estar na companhia de quem se ama.
Na época de seu lançamento, Elis & Tom foi muito bem recebido pela crítica. Walter Silva, do jornal Folha de S. Paulo, destacou a segurança de Tom e Elis ao longo do álbum. Para Sílvio Lancellotti, da revista Veja, o disco era uma “brincadeira, entretanto, séria — a mais séria e de melhor qualidade já perpetrada, este ano, na música brasileira”. Sobre a reunião de Elis e Tom num mesmo álbum, o jornal O Estado de S. Paulo afirmou: “o mais musical dos compositores brasileiros e, tecnicamente, a mais bem dotada das nossas intérpretes, em qualquer época”.
O álbum Elis & Tom sobreviveu ao tempo, e é
presença garantida nas mais diversas listas e enquetes sobre os maiores discos
da música brasileira em todos os tempos. Em 2023, estreou nos cinemas o filme
documentário Elis e Tom, só tinha de ser com você, dirigido por Roberto de
Oliveira, que registrou os bastidores das gravações do álbum Elis &
Tom.
Faixas
Lado 1
1."Águas de Março" (Tom Jobim)
2."Pois É" (Tom - Chico Buarque)
3."Só Tinha de Ser com Você" (Tom - Aloísio de
Oliveira)
4."Modinha" (Tom - Vinicius de Moraes)
5."Triste" (Tom Jobim)
6."Corcovado"(Tom Jobim)
7."O Que Tinha de Ser" (Tom - Vinicius de Moraes)
Lado 2
8."Retrato em Branco e Preto” (Tom - Chico Buarque)
9."Brigas, Nunca Mais" (Tom - Vinicius de Moraes)
10."Por toda a Minha Vida" (Tom - Vinicius de
Moraes)
11."Fotografia" (Tom Jobim)
12."Soneto de Separação" (Tom - Vinicius de Moraes)
13."Chovendo na Roseira" (Tom Jobim)
14."Inútil Paisagem" (Tom - Aloísio de Oliveira)
Referências:
Elis - uma biografia musical – Arthur de Faria, 2015, Arquipélago
Editorial
braziljournal.com
elisregina.com.br




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