“Brasil” (Eldorado/Roadrunner, 1989), Ratos de Porão
Por Sidney Falcão
O ano era
1989, o último ano de governo do presidente do Brasil à época, José Sarney, o
primeiro presidente civil após vinte anos de ditadura militar (1964-1985). Na
verdade, o presidente era para ter sido Tancredo Neves, eleito indiretamente no
colégio eleitoral 1985, derrotando Paulo Maluf (o preferido dos militares). Em
abril de 1985, Tancredo morreu após complicações de uma cirurgia. Sarney, que
era o seu vice na chapa de candidatura, assumiu o cargo. O governo de Sarney
foi marcado pelo caos econômico, em planos econômicos não conseguiram combater
a hiperinflação galopante (uma herança dos governos militares), que só agravava
o abismo social entre uma maioria pobre e um minoria de afortunados.
Naquele
mesmo ano, aconteceu a primeira eleição direta para presidente da república
após o fim da ditadura. Após quase trinta, o povo brasileiro voltou a escolher
um presidente da república, alfo que não acontecia desde 1960. O candidato
vencedor foi Fernando Collor de Mello, ex-governador de Alagoas, jovem, cara de
galã de novela, e que prometia acabar com a corrupção, coisa que não só ele não
conseguiu, como acabaria sendo deposto em 1992 por processo de impeachtment.
Foi num
cenário caótico como esse que a banda Ratos de Porão lançou em 1989 o seu
quarto álbum de estúdio, Brasil, um disco que por meio das suas
dezoito faixas, fazia uma radiografia da triste realidade social e política do
Brasil. O álbum foi um divisor de águas na carreira da banda paulista. O álbum
retratava a realidade social brasileira de 1989, em que os versos fortes e
diretas das canções foram embaladas por uma sonoridade pesada e agressiva, em
que os Ratos de Porão se mostravam completamente comprometidos com o crossover
thrash, uma tendência musical que estava em ascensão no final dos anos 1980 em que
bandas punks e de hardcore flertavam com o thrash metal.
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Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto direto após a ditadura militar. |
Mas essa
mudança sonora no trabalho dos Ratos de Porão não aconteceu de uma hora para
outra ou de um disco para o outro. A banda já havia escrito o seu nome na
história do punk rock brasileiro, tornou-se um dos nomes mais importantes do
estilo no Brasil. No entanto, já no seu segundo álbum de estúdio, Descanse
Em Paz (1986), os Ratos de Porão já davam sinais de uma aproximação com
o crossover thrash. Os membros da banda já estavam ouvindo grupos
de crossover thrash como S.O.D, Discharge e Broken Bones.
Em 1987,
essa aproximação dos Ratos de Porão com o crossover thrash se
torna mais intensa com o disco Cada Dia Mais Sujo e Agressivo,
lançado pelo selo de Belo Horizonte, Cogumelo Records, o que na época, tinha a
banda Sepultura no seu cast. Aliás, foi a partir daí que nasceu a
amizade entre as duas bandas, e o que de uma certa forma, contribuiu no processo
de transformação musical no som dos Ratos de Porão.
Em 1988, a
banda Ratos de Porão assina contrato com a gravadora Eldorado, e compôs
material novo para o próximo disco. Por indicação de Igor Cavalera, então
baterista do Sepultura, os Ratos de Porão firmaram um acordo com gravadora
independente holandesa Roadrunner para a distribuição dos discos da banda
paulista no mercado europeu e americano. No Brasil, os discos dos Ratos
continuariam sob a responsabilidade da gravadora Eldorado. Por volta de maio de
1989, os Ratos de Porão partiram para a Alemanha, onde iriam começar uma
pequena série apresentações naquele país e na Holanda. Os Ratos de Porão
aproveitaram a ocasião para gravar, em Berlim, o álbum Brasil, no estúdio Music
Lab, sob a produção de John Harris, um dos mais conceituados produtores
independentes de heavy metal. Até aquele momento, Harris já havia produzido
discos de bandas como Voivod, Helloween, Sodom, Tankard entre outras.
Uma
curiosidade, é que para cumprir o acordo firmado com a Roadrunner, os Ratos de
Porão gravaram uma versão em inglês do disco Brasil. Ou seja, durante a estadia
da banda em Berlim, a banda gravou duas versões de Brasil, uma em português
para o mercado brasileiro e uma versão em inglês para o mercado europeu e americano.
As gravações em inglês foram meio sacrificantes para João Gordo já que ele não
tinha domínio do idioma.
Lançado no
segundo semestre de 1989, Brasil traz o som dos Ratos de Porão mais pesado,
brutal e agressivo e com uma produção melhor apurada que os álbuns anteriores.
O papel de John Harris foi fundamental para que a banda alcançasse esse nível
qualidade. Harris é conhecido pelo seu profissionalismo e por ser um produtor
bastante exigente.
A capa do
álbum foi ilustrada pelo cartunista brasileiro Francisco Marcatti, é bem
condizente com o conteúdo das letras das músicas disco, a miséria, corrupção,
exploração religiosa entre outros temas tão espinhosos.
Embora tenha
dezoito faixas, audição do álbum transcorre em pouco mais de 28 minutos. Todas
as canções têm curta duração, sendo a faixa “Beber Até Morrer” a mais “longa”:
2 minutos e 20 segundos.
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Ratos de Porão em 1989, da esquerda para a direita: João Gordo, Jão, Spaghetti e Jabá |
O álbum
começa com “Amazônia Nunca Mais” que aborda o descaso do governo brasileiro com
a floresta amazônica. Nesta faixa, a banda alterna em alguns trechos um ritmo
mais veloz e mais lento, mas mantendo o peso. A curiosidade nesta faixa é uma
citação que a banda faz à ópera “O Guarani”, do maestro e compositor brasileiro
erudito Carlos Gomes (1836-1896).
A ditadura
militar já tinha acabado, mas na faixa “Retrocesso”, os Ratos de Porão alertavam
sobre um possível dela ao poder: “Cuidado com o poder / Do regime militar /
O tempo vai retroceder / E o DOI-CODI vai voltar no... / Brasil! Brasil!
Brasil!”. O velho lema “sexo, drogas
e rock’n’roll” ganhou uma atualização sombria com os Ratos de Porão virando
“AIDS, Pop, Repressão”, em que a banda emprega uma sutil levada rítmica que
acena para o rap, mas com uma base de thrash metal.
Em “Lei do
Silêncio”, os Ratos de Porão tratam sobre a ausência do poder em comunidades pobres
das grandes cidades brasileiras, tornando esses lugares reféns da criminalidade
eu impõe a “lei do silêncio”. A desobediência pode custar a própria vida.
“S.O.S. País
Falido” traça o retrato de um Brasil mergulhado numa hiperinflação econômica em
que a população desesperançada, encontra apoio na fé em Deus e um pouco de
alegria com a Seleção Brasileira de futebol. “Gil Goma” é uma sátira ao
repórter policial Gil Gomes (1940-2018), que fez muito sucesso no rádio e
depois na TV fazendo reportagens em programas policiais.
“Beber Até
Morrer” faz referência a pessoas que fazem uso do álcool de drogas para poder
encarar os problemas da vida ou fugir deles. “Plano Furado II” é uma crítica debochada
ao Plano Cruzado II, lançado pelo governo de José Sarney no final de 1986, uma
tentativa de salvar o Plano Cruzado, lançado no início daquele mesmo ano. A
nova tentativa fracassou e agravou o cenário econômico brasileiro no ano
seguinte.
O lado 1
termina com “Heroína Suicida” que descreve o poder destrutivo da heroína: “Sinta
as garras do pico assassino / Rasgando suas entranhas, traçando seu destino /
Sinta a apatia dessa multidão / Caminhando insanamente rumo à destruição”.
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A faixa "Plano Furado" é uma crítica ao Plano Cruzado II, mais um plano econômico lançado pelo governo do presidente José Sarney (foto) para conter a alta da inflação que não deu certo. |
“Crianças
Sem Futuro” abre o lado 2, um thrash metal cujo tema trata sobre o descaso dos
governantes brasileiros com as crianças pobres, que não têm acesso a saúde,
escola e a alimentação. A curtíssima “Farsa Nacionalista” é sobre o sujeito que
é pobre, trabalha muito, ganha mal, mas se manifesta a favor dos poderoso
endinheirados, uma clara demonstração de submissão e baixa autoestima.
A inclinação
dos Ratos de Porão para o thrash metal gerou críticas por parte dos punk mais
radicais que tacharam os membros da banda de “traidores”. O quarteto respondeu
com o punk rock “Traidor”, uma música que começa com um som dedilhado de
guitarra, e que logo dá lugar a um som pesado, veloz e furioso. “Porcos
Sanguinários” é um hardcore na fronteira com o heavy metal que traça uma
crítica à truculência policial.
O hardcore
“Vida Animal” trata sobre o lado animalesco que algumas pessoas podem ter,
capaz de cometer as maiores atrocidades, desde satisfazer-se com o sofrimento
dos outros até assassinatos em série. A faixa seguinte, “O Fim”, é instrumental
que começa muito bem com um som pesado e agressivo, mas que mais adiante é interrompida
bruscamente, quando ouve-se uma confusão, vozes reclamando, cachorros latindo, e
logo em seguida, o som é retomado no finalzinho da música, e desta em ritmo
thrash metal.
“Máquina
Militar” versa sobre o soldado que é tratado como um produto descartável pelas
forças armadas de seu país, após voltar de uma guerra abalado psicologicamente
ou mesmo mutilado. “Terra do Carnaval” fala da dívida externa do Brasil,
miséria e de políticos corruptos. Mas na reta final da música, numa gota de
esperança, a banda avisa a quem for eleito presidente que se quiser tirar o
país do buraco, tem que acabar com a inflação e seguir seu mandado
honestamente.
O disco
termina com “Herança”, cujo tema destoa das outras faixas do álbum. A faixa
trata sobre uma história trágica, um crime cometido por um homem que mata seus
pais, sua irmã caçula e o seu irmão mais velho para se apropriar dos bens da
família.
Brasil teve uma boa recepção por parte da
imprensa tanto no Brasil como no exterior, especialmente na Europa onde foi
lançada a versão em inglês. A produção muito cuidada do disco e a força brutal
do som dos Ratos de Porão, levaram o álbum Brasil a receber elogios da revista
inglesa Kerrang!. A boa impressão causada pelo disco no mercado de rock
alternativo no exterior, rendeu uma nova turnê europeia em 1990, que passou
pela Itália e Holanda. No mesmo ano, assim como fez com o álbum Brasil,
a banda foi à Alemanha, e gravou o próximo álbum, Anarkophobia,
no estúdio Music Lab, em Berlim, e com Harri Johns no comando da produção, e
com duas versões, uma em português e outra em inglês. Anarkophobia foi
lançado em 1991 e consolidou de vez o processo de transição musical dos Ratos
de Porão assim como a própria carreira internacional da banda paulista, que se
tornou uma realidade.
Faixas - Todas as faixas são escritas por Ratos de Porão.
Lado A
1 - "Amazônia Nunca Mais"
2 - "Retrocesso"
3 - "Aids, Pop, Repressão"
4 - "Lei Do Silêncio"
5 - "S.O.S. Pais Falido"
6 - "Gil Goma"
7 - "Beber Até Morrer"
8 - "Plano Furado 2"
9 - "Heroína Suicida"
Lado B
1 - "Crianças Sem Futuro"
2 - "Farsa Nacionalista"
3 - "Traidor"
4 - "Porcos Sanguinários"
5 - "Vida Animal"
6 - "O Fim"
7 - "Maquina Militar"
8 - "Terra Do Carnaval"
9 - "Herança"
Ratos de Porão: João Gordo (vocal), Jão (guitarra), Jabá (baixo) e Spaghetti (bateria).
Referências:
Revista Bizz – outubro/1989 – Edição 51, Editora Azul, São Paulo, Brasil.
Revista Bizz – fevereiro/1991 – Edição 67, Editora Azul, São
Paulo, Brasil.
Dias de Luta: o rock e o Brasil dos anos 80 – Ricardo Alexandre, Arquipélago
Editorial, 2013
wikipedia.org
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