“Construção” (Philips, 1971), Chico Buarque


Por Sidney Falcão

Quando a ditadura militar, instaurada no Brasil em 1964, impôs no final de dezembro de 1968 o AI-5 (Ato Institucional Nº 5), a situação político-social que já era ruim no país, se tornou ainda pior. O ato dava plenos poderes ao governo militar, dando-lhes o direito de censurar, prender e torturar qualquer um que se voltasse contra o regime ditatorial. Artistas, intelectuais e políticos vistos como inimigos do regime autoritário como os cantores Caetano Veloso e Gilberto Gil, os diretores teatrais Augusto Boal (1931-2009) e José Celso Martinez Corrêa, os cineastas Cacá Diegues Glauber Rocha (1939-1981), os artistas plásticos Antonio Dias (1944-2018), Hélio Oiticica (1937-1980), Lygia Clark (1920-1988) entre outros, foram obrigados a deixar o Brasil e buscar refúgio no exterior. Nessa leva de pessoas que deixaram o Brasil e partiram para o exílio no exterior estava o cantor e compositor carioca Chico Buarque de Hollanda.

Chico havia despontado no cenário musical brasileiro ainda muito jovem, em 1966, quando aos 22 anos de idade, viu a sua canção, “A Banda”, cantada por Nara Leão (1942-1989), dividir o 1° lugar com “Disparada”, de Geraldo Vandré, e cantada por Jair Rodrigues, no II Festival de Música Popular Brasileira, organizado pela TV Record, em São Paulo. Dali em diante, Chico foi construindo a sua carreira, gravando discos e participando de festivais. Talvez pela sua aparente timidez, Chico Buarque era “vendido” para o público como uma versão moderna de Noel Rosa (1910-1937), como um cantor doce e romântico.

No entanto, para alguns, Chico era considerado um artista que não tinha um posicionamento mais explícito contra a ditadura. Talvez cobrassem dele uma atitude mais radical como a de Geraldo Vandré. Mas isso era um pensamento equivocado e injusto. Chico já havia usado o seu talento em obras com apelo político-social como a canção “Pedro Pedreiro”, em 1965, e até mesmo no teatro, quando escreveu a peça Roda Viva, em 1968, que sofreu perseguição do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que invadiu o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, e agrediu artistas e destruiu o cenário da peça.

Primeira página do "Jornal do Brasil", de 14 de dezembro de 1968, noticiando o decreto 
do AI-5, o mais implacável ato institucional imposto pela ditadura militar. 


Em janeiro de 1969, Chico Buarque e a sua então esposa, a atriz Marieta Severo, que estava grávida, deixaram o Brasil e partiram para o exterior, onde o cantor já tinha compromissos profissionais agendados. O primeiro compromisso de Chico na Europa foi em Cannes, na França, onde participou do MIDEM, importante feira da indústria fonográfica. Depois seguiram para Roma, na Itália. Lá, Chico tinha um disco em italiano para gravar. Porém, as notícias que Chico recebia do Brasil não eram nada animadoras. Com o clima político tenso no Brasil e o estado adiantado da gravidez da esposa Marieta, Chico Buarque achou melhor e mais seguro permanecer algum tempo na Itália. A filha do casal, Sílvia, nasceu em Roma, em março de 1969.

Para sustentar esposa e a filha recém-nascida numa estadia na Itália estendida, Chico convidou o amigo Toquinho, cantor e compositor, para acompanha-lo numa temporada de shows em cidades italianas, abrindo as apresentações da cantora norte-americana naturalizada francesa, Josephine Baker (1906-1975).

Durante o exílio na Itália, além dos shows com Toquinho, Chico gravou e lançou o álbum italiano que já estava previsto, Per Um Pugno di Samba, que traz arranjos criados pelo maestro e arranjador Ennio Morricone (1928-2020). O título do disco foi inspirado no título de um filme de grande sucesso do cinema italiano, Per Un Pugno Di Dollari (No Brasil Por Um Punhado de Dólares), de 1964. Contudo, o disco foi um fracasso em vendas.

A estadia de Chico e sua família em solo italiano também foi garantida pelo adiantamento que a gravadora Philips fez ao cantor em troca de um disco no Brasil. O disco era Chico Buarque de Hollanda – N° 4, gravado uma parte na Itália (voz e violão de Chico em Roma) e a outra parte no Brasil (base instrumental, no Rio de Janeiro). Lançado em 1970, Chico Buarque de Hollanda – N° 4 foi o primeiro álbum de Chico Buarque lançado pela gravadora Philips, após quatro anos na RGE.

Em março de 1970, Chico Buarque, sua esposa e filha, retornaram ao Brasil depois de quase um ano e meio no exílio na Itália. O retorno de Chico já foi cercado de polêmica com o lançamento do compacto (single) da música “Apesar de Você”, um samba alegre e cheio de mensagens de esperanças. O lado B do compacto trazia a canção “Desalento”. O sucesso de “Apesar de Você” fez o compacto vender mais de 100 mil na primeira semana de lançamento. Porém, após uma nota de um jornal carioca insinuar que o “você” da canção era verdade o então presidente do Brasil, Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), o mais implacável dos presidentes da ditadura militar. A música foi censurada e a polícia recolheu todas as cópias que ainda estavam à venda nas lojas. Nem a desculpa dada por Chico Buarque de que se tratava de uma mulher mandona, convenceu as autoridades. “Apesar de Você” foi liberada em 1978, e foi incluída no álbum Chico Buarque, lançado naquele ano.

Após um ano no exílio na Itália, Chico Buarque, Marieta Severo e a filha Sílvia
desembarcam no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em março de 1970. 

Mas foi no ano seguinte, em 1971, que Chico Buarque lançou aquele que é considerado o seu melhor álbum, Construção. O álbum mostrava um Chico Buarque mais maduro e com um senso crítico sobre a realidade político-social brasileira bem mais afiado. Evidente que o disco tinha espaço também para canções com temas mais amenos como as canções de amor. O repertório do disco foi formado por canções compostas durante o exílio e o retorno do artista ao Brasil.

Construção teve como produtor Roberto Menescal, direção artística de Antônio José Waghabi Filho (1943-2012), mais conhecido como “Magro”, um dos vocalistas do grupo MPB-4, e arranjos de Rogério Duprat (1932-2006) em algumas faixas. O álbum foi o primeiro de Chico Buarque a ser lançado após o seu retorno ao Brasil. A intenção da gravadora é fazer do álbum não apenas um sucesso de crítica, mas também comercial. Até então, os álbuns de Chico tinham vendas bastante modestas, vendendo em média entre 30 a 40 mil cópias.

Um fato inusitado quase fez o álbum Construção não existir. Durante o processo de mixagem do álbum, um técnico de estúdio, sem querer, apertou um botão que apagou a gravação da orquestra conduzida por Rogério Duprat. Houve uma tentativa para recuperar a gravação, mas foi inútil. A saída foi gravar com a orquestra novamente. Porém, não havia mais verba para contratar a orquestra. Como além de produtor, Menescal era também diretor artístico da gravadora Philips, ele encontrou um jeito de solucionar o problema. Menescal uma lista de álbuns que estavam em processo de gravação (Elis Regina, Gal Costa e outros artistas que estavam gravando discos), e retirou um pouco da verba e cada um deles. A orquestra foi recontratada, as gravações foram refeitas tranquilamente. Nem o presidente da gravadora, André Midani (1932-2019), e nem mesmo Chico Buarque, não souberam na época dessa estratégia.

Convidados ilustres participaram das gravações do álbum Construção, dentre eles o grupo MPB-4, Tom Jobim, Toquinho e Trio Mocotó.

Toquinho, MPB-4 e Tom Jobim, alguns dos convidados de
Chico Buarque no álbum Construção.

O álbum começa com a fantástica “Deus lhe Pague”, uma canção com uma linha melódica repetitiva e tensa, que serve de pano de fundo para uma letra que é quase uma oração travestida de ironia. Numa época de censura e tortura imposta pela ditadura militar no Brasil, Chico se mostra ironicamente agradecido ao regime ditatorial pelas coisas básicas do cotidiano: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir / A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir / Por me deixar respirar, por me deixar existir / Deus lhe pague”. Nesta canção, Chico é acompanhando pelo grupo MPB-4 nos vocais de apoio.

“Cotidiano”, a faixa seguinte, trata sobre a vida entediante de um casal. Assim como na faixa anterior, em “Cotidiano”, a linha melódica da canção é repetitiva, monótona, praticamente uma sequência giratória que condiz com a ideia da rotina de vida dos personagens da letra da canção.

Lançada antes como lado B do single de “Apesar de Você”, em 1970, “Desalento reaparece no álbum Construção. A canção de teor romântico conta a história de um homem arrependido por não ter perdoado a mulher que amava. Depois que ela partiu, esse homem se desespera e pede ajuda a alguém para que a convença a voltar.

A faixa-título é que encerra o lado A da versão LP do álbum. “Construção”, a canção, é considerada a obra-prima de Chico Buarque dentre tudo que ele já compôs na sua carreira. A letra de “Construção” conta de maneira poeticamente dramática e numa descrição cinematográfica, os últimos momento da vida de um operário na construção e um edifício, que no final, morre de maneira trágica, mas sendo apenas mais uma vida “descartável” que se vai. Chico Buarque emprega aqui toda a sua genialidade na maneira como construiu a letra da canção, com versos muito bem elaborados e milimetricamente bem pensados. Os versos são dodecassílabos e terminam com palavras trissílabas proparoxítonas. E para dar uma “embalagem” luxuosa aos versos carregados de lirismo poético de Chico, o maestro Rogério Duprat preparou um arranjo de orquestra que dá um tom de tensão por trás da levada arrastada de samba. A música termina trazendo de volta um trecho de “Deus lhe Pague”.

A canção "Construção" foi a consagração de Chico Buarque como compositor.

O lado 2 de Construção abre com “Cordão”, um samba leve e singelo, aparentemente inofensivo, mas que guarda em seus versos mensagens sutis de resistência à ditadura: “Ninguém / Ninguém vai me segurar / Ninguém há de me fechar / As portas do coração”.

A melancólica “Olha, Maria”, traz Tom Jobim ao piano e um naipe de cordas que embalam o canto triste de Chico Buarque sobre um homem sofrido que se despede de Maria, mulher por quem ele é apaixonado. Apesar do amor e do desejo que sente por Maria, ele prefere que ela se vá, pois, a única coisa que tem para oferecê-la é a sua agonia.

O clima fica mais animado com “Samba de Orly”, escrita durante o exílio de Chico Buarque na Itália. Toquinho estava deixando a Itália para retornar ao Brasil e deixou com Chico uma música para pôr letra. Inspirado no retorno de Toquinho ao Brasil, Chico escreveu a letra como um pedido ao amigo para que ele mandasse notícias do Brasil. A letra, que também teve contribuição do poeta Vinícius de Moraes (1913-1980), passou por algumas alterações por causa da censura: saiu o verso “pede perdão pela omissão um tanto forçada” substituído por “pede perdão pela duração dessa temporada”. O título da canção poderia ter sido “Samba de Fiumicino”, uma alusão ao aeroporto de Fumicino, em Roma, cidade onde Chico Buarque estava exilado com sua família. Por ser um aeroporto pouco conhecido, preferiram colocar o nome do aeroporto de Orly, em Paris, que era mais famoso e de uma cidade onde haviam muitos brasileiros exilados por conta da ditadura militar no Brasil. A música foi então batizada “Samba de Orly”, e que conta com a participação animada do Trio Mocotó na percussão, e do grupo MPB-4 nos vocais de apoio.

Como diz o próprio título, “Valsinha” tem um andamento discreto de valsa. A letra desta canção descreve o renascer da paixão de um casal que não se contém de tanta felicidade e desejo, que começa a bailar em praça pública. O título, a princípio, seria “Valsa Hippie”, sugerido por Vinícius de Moraes, mas Chico preferiu “Valsinha”.

“Minha História” é uma versão em português da canção italiana “Gesù Bambino”, de Lucio Dalla e Paola Pallotino. A versão original trata sobre a história de uma mulher que teve um filho com um soldado aliado durante a Segunda Guerra Mundial. O soldado foi embora, e a mulher deu à luz a uma criança a quem chamou de Gesubambino (Menino Jesus, em português). Já a versão em português de Chico Buarque versa sobre uma história semelhante, em que uma prostituta engravidou de um homem que sumiu sem assumir a paternidade da criança. A mulher nomeou o seu bebê de Menino Jesus e, para ninar a criança, costumava cantar canções do cabaré onde trabalhava, pois não lembrava mais das canções de acalanto.

E falando em canções de acalanto, o álbum Construção termina com “Acalanto”, uma canção de ninar que Chico escreveu dedicada à sua filha Sílvia. Embora seja uma canção delicada e singela, “Acalanto” contém versos que fazem referência, de maneira muito sutil, ao momento sombrio que o Brasil vivia sob o comando da ditadura militar: “Dorm'inha pequena / Não vale a pena despertar / Eu vou sair / Por aí afora / Atrás da aurora / Mais serena”. Quando Chico diz à filha que vai sair atrás da “aurora mais serena”, é na verdade uma busca pelo fim do regime autoritário em que o Brasil estava submetido.

O casal Marieta Severo e Chico Buarque com a filha Sílvia em 1970:
a canção "Acalanto" foi dedicada à criança .

Construção conseguiu alcançar o objetivo que a gravadora esperava. Foi um sucesso de crítica, como já era de se esperar, mas também sucesso em vendas. Só na primeira semana de vendas, o quinto álbum de Chico vendeu mais de 100 mil cópias. O desempenho comercial foi tão bem sucedido que o disco de Chico Buarque disputava nas paradas de álbuns com o álbum de Roberto Carlos lançado naquele ano. Segundo o próprio produtor Roberto Menescal, o álbum Construção teria vendido por volta de 300 mil a 400 mil cópias.

Além de bem sucedido na época de seu lançamento, Construção nortearia Chico Buarque durante a década de 1970 para um tipo de música mais combativa, engajada, o que levaria o artista a ser perseguido pela censura, embora tivesse conseguido desenvolver a capacidade de esquivar-se dela através de artifícios que iam desde versos com mensagens indiretas (o que ele já vinha fazendo) até mesmo a assinar suas canções por meio de pseudônimos como Julinho de Adelaide.  

O álbum, assim como a faixa-título, construiu ao longo de décadas, uma reputação irretocável, conseguindo firma-se como um dos mais importantes discos da música brasileira em todo os tempos. A edição de outubro de 2007 da edição brasileira da revista Rolling Stone, publicou a lista dos 100 maiores discos da Música Brasileira, onde Construção figurou em 3° lugar.

Faixas

Lado 1

  1. "Deus lhe Pague" (Chico Buarque)   
  2. "Cotidiano" (Chico Buarque)
  3. "Desalento" (C. Buarque - Vinicius de Moraes)       
  4. "Construção" (Chico Buarque)           

Lado 2

  1. "Cordão" (Chico Buarque)    
  2. "Olha Maria (Amparo)" (C. Buarque - V. de Moraes - Tom Jobim) 
  3. "Samba de Orly" (C. Buarque – Toquinho - V. de Moraes) 
  4. "Valsinha" (C. Buarque – V. de Moraes)      
  5. "Minha História" (Lucio Dalla - Paola Pallotino; versão de C. Buarque)     
  6. "Acalanto" (Chico Buarque)

Referências:

Revista Bizz – janeiro/2006 – Edição 197, Editora Abril.

Histórias de Canções: Chico Buarque – Wagner Homem, 2009, Editora Leya, São Paulo, Brasil                                                         

wikipedia.org  

 

"Deus lhe Pague"

"Cotidiano"

"Desalento"

"Construção"

"Cordão"

"Olha Maria (Amparo)"

"Samba de Orly"

"Valsinha"

"Minha História"

"Acalanto"

 


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