“Aqualung” (Chrysalis/Island Records, 1971), Jethro Tull
Por Sidney Falcão
“Conceitual ou não conceitual? Eis a questão”. Esse dilema ecoa há décadas desde que Aqualung, quarto álbum de estúdio do Jethro Tull, foi lançado em março de 1971. Se para a crítica Aqualung é um álbum conceitual por trazer canções sobre moradores de rua um lado, e do outro, canções que tecem crítica à religião, para o vocalista, flautista e líder da banda inglesa, Ian Anderson, o álbum não passava de uma coleção de canções.
Aqualung representou não
apenas a consagração do Jethro Tull no cenário mundial do rock como também a
consolidação da linha musical da banda. Quando surgiu, em 1967, na cidade
Blackpool, na Inglaterra, o Jethro Tull era uma banda fundamentada no blues
rock e no jazz, o que fica bem claro no seu primeiro álbum de estúdio, This
Was (1968).
Mas haviam
divergências dentro da banda entre o guitarrista Mick Abrahams e Ian Anderson.
Enquanto Abrahams queria o Jethro Tull no campo do blues e do R&B, Anderson
queria que a banda explorasse outras possibilidades, que expandisse os seus
horizontes musicais, experimentando elementos da folk music, da música erudita
e até da asiática, tudo misturado ao rock. O choque entre os dois motivou
Abrahams a deixar o grupo ainda em 1968, e formar uma nova banda, a Blodwyn Pig,
esta mais dedicada à proposta musical que ele queria.
Sem Abrahams,
Anderson assumiu a liderança do Jethro Tull, e a banda trilhou outros caminhos
a partir do segundo álbum, Stand Up (1969), trabalho que dá
início ao processo de transição musical. Stand Up traz um Jethro Tull
completamente diferente, sem o blues rock, e agora mergulhado na sonoridade do
folk rock, experimentando inclusive elementos do folk celta e flertando com o
nascente rock progressivo. Outra novidade que o álbum apresenta é um novo
guitarrista, o subestimado Martin Barre, que entrou no lugar de Mick Abrahams.
Ian Anderson, vocalista, flautista e líder do Jethro Tull. |
O processo de transição musical segue com o próximo álbum, Benefit, lançado em abril de 1970. Em Benefit, o Jethro Tull agrega ao seu som baseado no folk rock e no rock progressivo, o peso do hard rock, o que neste caso, revela uma importância fundamental do guitarrista Martin Barre, que cria vários riffs de guitarra inspirados em em guitarristas como Jimi Hendrix e Jimmy Page (do Led Zeppelin).
Com Aqualung,
o Jethro Tull finalmente encontrou o seu estilo, a sua identidade musical.
Todas as referências musicais que a banda havia experimentado desde o segundo
álbum, resultaram numa combinação muito bem acertada e equilibrada em Aqualung,
envolvendo folk music, hard rock e o rock progressivo.
As gravações de
Aqualung ocorreram entre dezembro de 1970 e fevereiro de 1971, sob a produção
de Ian Anderson e de Terry Ellis, que além de produtor e co-fundador do selo
Chrysalis, era empresário do Jethro Tull. O álbum foi gravado num recém-inaugurado
estúdio construído pela Island Records dentro de uma antiga igreja, em Basing
Street, em Londres. Na época, enquanto o Jethro Tull gravava Aqualung
numa sala, o Led Zeppelin gravava numa sala vizinha o seu antológico Led
Zeppelin IV.
Saída, entrada e até
efetivação de integrante marcaram as gravações do quarto álbum do Jethro Tull.
O álbum foi o último trabalho que o baterista Clive Bunker gravou como membro
do Jethro Tull. Por outro lado, o quarto álbum da banda inglesa foi o primeiro
gravado pelo novo baixista do grupo, Jeffrey Hammond, substituto de Glenn
Cornick que havia deixado o Jethro Tull após a turnê de Benefit. Enquanto isso, o
tecladista John Evan, antes músico contratado para acompanhar a banda nas
gravações e em shows, era efetivado no Jethro Tull, e Aqualung foi o primeiro
trabalho que ele gravou como membro oficial do conjunto.
Jethro Tull em 1971, da esquerda para direita: Clive Bunker, Martin Barre, Jeffrey Hammond, Ian Anderson e John Evan. |
A produção do álbum contou também com os trabalhos do arranjador Dee Palmer, responsável pelos arranjos de orquestra e regência em Aqualung. Curiosamente, Palmer se tornou anos mais tarde tecladista do Jethro Tull, entre 1976 e 1980.
Lançado em 19 de
março de 1971, Aqualung foi considerado pela crítica musical um álbum
conceitual. Isso se deveu ao fato do disco ser dividido em duas linhas
temáticas. O lado A, batizado Aqualung, traz canções que tratam basicamente
sobre aspectos da natureza humana, bem como personagens presentes nessas
canções como o mendigo pedófilo Aqualung
e a prostituta colegial Cross Eyed Mary. O lado B, chamado de My God, traz canções que tratam sobre
religião sob o ponto de vista de Ian Anderson, que como autor das canções, traça
uma visão bastante crítica e pessimista.
O álbum abre com a
faixa-título cuja letra faz referência ao mendigo chamado Aqualung, um morador
das ruas de Londres que veste roupas surradas, cata restos de comida com dedos
engordurados e o nariz escorrendo meleca. Ele tem o hábito de observar as
calcinhas das garotas que passavam pela rua. A música começa com um fantástico riff de guitarra executado
brilhantemente por Martin Barre, que marcaria toda a carreira do Jethro Tull. Para
escrever a letra dessa música, Ian Anderson se inspirou na série de fotos de
moradores de rua de Londres fotografadas pela sua esposa, a fotógrafa Jennie
Anderson. Por causa disso, Jennie foi creditada como co-autora da letra de
“Aqualung”.
Cross-Eyed Mary é
outra personagem presente no álbum e que dá nome à segunda faixa que começa com
o som incrível e inconfundível da flauta de Ian Anderson. A música trata sobre
uma estudante que se prostitui com homens ricos, mas que também faz uma
“caridade sexual” para Aqualung sem cobrar nada, proporcionando a ele algum
momento de felicidade na vida miserável daquele homem.
As próximas canções
até encerrar o lado A, o Jethro Tull toma um caminho musical que transita entre
a folk music e o folk rock. “Cheap Day Return” é uma curta e linda balada folk
de melodia agradável, em que a letra diz respeito a Ian Anderson e a sua visita
ao seu pai internado num hospital. A faixa seguinte também é uma balada folk,
“Mother Gosse”, que apesar de essencialmente acústica, traz em alguns momentos
da canção riffs de guitarra elétrica
que dão base a versos surreais e absurdos. “Wond’ring Aloud” é de uma beleza melódica
sensível e até mesmo comovente, realçada pelo naipe de cordas e pelo piano
executado por John Evan. O lado A termina com “Up To Me”, uma canção folk de
ritmo lento, com algumas inserções de guitarra elétrica distorcida, além da presença
constante da percussão e da flauta executada por Ian Anderson.
Arte interna da capa dupla de Aqualung. |
O lado B, intitulado My God, começa com o violão dedilhado que dá início a “My God”, que mais adiante dá lugar a um som poderoso de hard rock e a uma performance sensacional de Martin Barre na guitarra, enquanto Ian Anderson mostra toda a sua habilidade fantástica na flauta. Em “My God”, os versos de Anderson tecem duras críticas às instituições religiões e ao seu poder de castrar a liberdade dos seus fiéis e de manipulá-los.
“Hymn 43” é uma
crítica dura aos líderes religiosos e a instituições que usam o nome de Jesus
para se promoverem: “If Jesus saves well he better save himself / From the gory
glory seekers who use his name in death / Oh Jesus save me.” (“Se Jesus salva, bem, seria melhor ele
salvar a si mesmo / daqueles que buscam a glória sangrenta, que usam seu nome
na morte / Oh Jesus, salve-me!").
“Slipstream” seria
uma reflexão sobre o materialismo e a vida após a morte. Ian Anderson compôs
“Locomotive Breath” preocupado com a superpopulação no mundo. A locomotiva
presente na letra seria uma metáfora para o crescimento descontrolado da
população, tal qual um trem pesado e desgovernado. O álbum fecha com “Wind Up”,
uma canção que questiona os dogmas da Igreja e critica a forma como ela
transforma Deus num “brinquedo de dar corda”.
A arte da capa de Aqualung
foi desenvolvida pelo pintor e desenhista americano Burton Silverman. O
trabalho foi encomendado por Terry Ellis, produtor do álbum e empresário do
Jethro Tull. Silverman fez três pinturas em aquarela para ilustrar a capa,
contracapa e a parte interna da capa dupla do álbum, todo o trabalho ao custo
de US$ 1.500 (mil e quinhentos dólares). A capa mostra um mendigo com cara de
poucos amigos e que seria a representação do personagem Aqualung. Quem detestou
a capa foi Ian Anderson, que achou aquele homem maltrapilho e enfezado muito
parecido com ele. Silverman por sua vez, afirmou que ele mesmo foi o modelo
para o mendigo retratado e não Anderson.
Mas a polêmica não
parou por aí, e o fato do mendigo da capa se parecer ou não com Anderson foi o
menor dos problemas. Enquanto o álbum vendeu milhões de cópias em todo o mundo,
a imagem da capa foi usada para ilustrar todo tipo de produto como camisetas,
canecas, roupas e pôsteres, gerando lucros para o Jethro Tull, Silverman pouco
lucrou com a arte que ele fez para Aqualung. Talvez o erro tenha
ocorrido lá no passado, no momento em que foi encomendado do trabalho, quando não
foi acertado se o artista teria direito a determinada porcentagem dos lucros
que a arte da capa pudesse gerar após o lançamento do álbum, bem como para
outras finalidades que tivesse a função de propagar a imagem e o nome do Jethro
Tull. Provavelmente, o artista não imaginou o imenso sucesso que o disco iria
ter e nem que aquela capa iria entrar no imaginário do rock.
Ao longo do tempo,
Burton Silverman tentou vários acordos com a banda, mas todos foram em vão. O artista,
já idoso, chegou a tentar um contato direto com Ian Anderson, que apesar de
nunca ter manifestado apreço pela capa de Aqualung, se limitou a dizer que o
Jethro Tull tinha direito de uso da arte da capa.
O pintor Burton Silverman, autor das pinturas que ilustram Aqualung, em seu estúdio em 2018, aos 90 anos de idade. |
O desempenho comercial de Aqualung foi incrível. Alcançou a marca de 3 milhões de cópias vendidas somente nos Estados Unidos. Em todo o mundo, o álbum vendeu mais de 7 milhões de cópias, o que fez Aqualung se tornar o álbum mais vendido da discografia do Jethro Tull. No Reino Unido, Aqualung chegou ao 4º lugar na parada de álbuns, enquanto que nos Estados Unidos, o álbum ficou em 7º lugar na parada da Billboard 200. Aqualung chegou ao 5º lugar da parada de álbuns do Canadá.
A recepção de Aqualung
na época de seu lançamento por parte da crítica foi razoável. Devido à divisão
temática dos dois lados do disco, os títulos que cada um desses lados possui, fizeram
a imprensa musical classificar Aqualung como um álbum conceitual.
Ian Anderson, líder do Jethro Tull, ficou surpreso com o rótulo, e discordou completamente
afirmando que o álbum não era conceitual, que no máximo poderia haver canções
com uma linha temática semelhante.
Como provocação, Ian
Anderson decidiu que o próximo álbum do Jethro Tull seria conceitual
propositalmente. E foi o que aconteceu quando em março de 1972, o Jethro Tull
lançou Thick As A Brick, um álbum conceitual que contém uma longa e
ininterrupta música dividida em dois lados do disco, e que passa por vários
andamentos e ritmos. A letra é baseada no poema de um menino fictício chamado
Gerald Bostock em que ele narra como seria a sua vida, desde a infância à
velhice. O álbum de faixa “quilométrica” fez um enorme sucesso de público e de
crítica. Mas esta é uma outra história, e que será contada numa outra
oportunidade.
Faixas
Todas as canções por
Ian Anderson, exceto a indicada.
Lado A: Aqualung
- "Aqualung" (Ian Anderson - Jennie Anderson)
- "Cross-Eyed Mary"
- "Cheap Day Return"
- "Mother Goose"
- "Wond'ring Aloud"
- "Up to Me"
Lado B: My God
- "My God"
- "Hymn 43"
- "Slipstream"
- "Locomotive Breath"
- "Wind Up"
Jethro Tull: Ian Anderson (vocais, violão, flauta) Martin Barre (guitarra, flauta doce soprana) John Evan (piano, órgão, mellotron), Jeffrey Hammond (baixo, flauta doce alta vocais) e Clive Bunker (bateria, percussão).
Comentários
Postar um comentário