Moving Pictures (Mercury, 1981), Rush



Por Sidney Falcão

Na segunda metade dos anos 1970, o rock progressivo encontrava-se em franca decadência. A disco music era a grande sensação daquele momento, dominando as paradas de sucesso, vendagens de discos e, claro, as pistas de dança em todo o mundo. Enquanto isso, o punk e a new wave propagavam um sopro de renovação no rock através do surgimento de uma nova geração de bandas e cantores. A estética, o excesso de virtuosismo e pretensão do rock progressivo tornaram o estilo anacrônico aos olhos de um novo público roqueiro que surgia. Bandas progressivas como Yes e Emerson Lake & Palmer, por exemplo, eram vistas como “ultrapassadas”, verdadeiros “dinossauros”. O Pink Floyd, ainda gozava de algum prestígio, mas vivia conflitos internos que prenunciavam o começo do fim.

Por outro lado, algumas poucas bandas do rock progressivo conseguiram se reinventar em meio àquele cenário de transformação. Buscaram novos caminhos e se deram bem. Neste caso, Genesis e Rush foram exemplos bem-sucedidos de bandas do rock progressivo que se reinventaram em meio ao processo de renovação no rock trazido pelo punk e pela new wave. Em comum, as duas bandas deixaram de lado as músicas longas de mais de dez minutos, optaram por canções curtas e rumaram para um caminho voltado para uma sonoridade mais pop e radiofônica. Contudo, se com o Genesis, o flerte com um tipo de música mais acessível aconteceu mais cedo, em 1978, com And Then There Were Three - álbum que contém o megahit “Follow You, Follow Me” – com o Rush a história demorou um pouco mais tarde para acontecer.

Em seu primeiro e autointitulado álbum, lançado em 1974, o Rush era uma banda de hard rock. Mas já a partir de seu segundo trabalho, Fly By Night (1975), álbum que marcou a entrada de Neil Peart em lugar de John Rutsey na bateria, o trio canadense começa a dar sinais de que iria inclinar a sua orientação musical para o rock progressivo, numa época em que o estilo já se mostrava desgastado. Contudo, o Rush ignorou a situação desfavorável para o rock progressivo, e prosseguiu com o processo de transição para o estilo com o aclamado álbum 2112 (1976), e consolidou com os álbuns A Farewell To Kings (1977) e Hemispheres (1978), trabalhos que trazem uma banda envolvida com músicas longas, temas ligados à ficção-científica e fantasia, arranjos complexos, e apostando cada vez mais nos sintetizadores.

Rush em 1978, da esquerda para a direita: Alex Lifeson, Neil Peart e Geddy Lee.

Porém, uma nova transformação musical no Rush começa a ocorreu na virada da década de 1970 para a de 1980. Naquele momento, a new wave era a grande sensação no mundo do rock. Deixou de ser um estilo alternativo e agora havia sido abraçado pela grande indústria fonográfica. Bandas como Blondie, The Police, Talking Heads e B-52’s, eram presenças garantidas nas paradas de sucesso e vendiam cada vez mais discos. No Reino Unido, o pós-punk abria uma nova cena no rock britânico, revelando dezenas de novas bandas britânicas das mais diversas tendências. O reggae jamaicano, por sua vez, tendo à frente os astro Bob Marley, encerra os anos 1970 consagrado no cenário da música pop mundial. Atento a tudo isso estava o Rush, observando toda aquela situação musical, e absorvendo todas as referências que logo lhe seriam úteis para a nova guinada que a banda canadense iria dar.

Com o álbum Permanent Waves, de 1980, o Rush promove uma nova ruptura musical na sua trajetória. Embora trouxesse uma faixa longa de quase dez minutos, uma herança da fase progressiva, o álbum apresenta o som do Rush menos complexo, e influenciado pela new wave e pelo reggae. As faixas “The Spirit of Radio” e “Freewill” mostram um Rush decidido em produzir canções com apelo mais radiofônico. Não à toa, ambas as faixas foram grandes sucessos, e apresentaram o Rush para um novo tipo de público.

Se Permanent Waves promoveu uma nova ruptura na música do Rush, o álbum seguinte, Moving Pictures, foi a consolidação dessa nova ruptura. Oitavo álbum de estúdio do Rush, Moving Pictures conseguiu unir com bastante eficiência o virtuosismo e o apuro técnico do rock progressivo, o peso do hard rock (o estilo não havia sumido por completo do repertório da banda) com o apelo pop e radiofônico da new wave e do reggae. O resultado foi uma sonoridade forte, poderosa, técnica e acessível.

Moving Pictures começou a ser pensado ainda após a turnê promocional de Permanent Waves, que se encerrou em junho de 1980. A princípio, haviam planos da banda lançar um álbum gravado ao vivo a partir de algumas gravações feitas dos shows da turnê de Permanent Waves. Porém, mudaram de ideia e optaram pela preparação de material inédito para um álbum de estúdio para aproveitar o bom desempenho comercial de Permanent Waves e o sucesso da faixa “The Spirit of Radio” nas paradas de sucesso.

Para compor material do próximo álbum com mais tranquilidade, o trio se refugiou na bucólica fazenda do cantor e compositor Ronnie Hawkins, próximo ao lago Stony Lake, norte de Peterborough, Ontário, no Canadá. Foi nessa fazenda que foram compostas boa parte das músicas do novo álbum como “The Camera Eye”, “Tom Sawyer”, “Red Barchetta” e “Limelight”. O celeiro da fazenda virou estúdio de ensaio para a banda tocar as novas composições.

Sob a produção de Terry Brown e do Rush, as sessões de gravação de Moving Pictures ocorreram entre outubro e novembro de 1980, no Le Studio, em Morin-Heights, Quebec, no Canadá. Moderno e confortável, o Le Studio era equipado com máquina de gravação digital de 48 canais, e ainda possuía instalações para hospedar os artistas que lá iam fazer as suas gravações. Até então, artistas como Cat Stevens, Bee Gees, Chicago, Nazareth, April Wine, Pilot e The Police, já haviam gravado no Le Studio. O próprio Rush gravou o álbum Permanent Waves no Le Studio, que desde então, passou a ser uma espécie de “quartel-general” do trio canadense, onde gravou a maioria dos seus discos posteriores.

Rush no Le Studio, onde a partir de Permanent Waves (1980), passou a gravar
os seus álbuns posteriores , entre eles, Moving Pictures.

Lançado em 12 de fevereiro de 1981, Moving Pictures traz no seu lado 1, na versão LP, uma sequência poderosa de canções que de certa forma, acabaram eclipsando o lado 2 do álbum. Enquanto o lado 1 possui quatro músicas “palatáveis”, aptas para tocar no rádio, o lado 2 possui apenas três faixas, sendo que a primeira, “The Camera Eye”, é uma longa faixa de quase dez minutos de duração.

A capa de Moving Pictures foi criada pelo designer gráfico Hugh Syme, que a partir do álbum Caress Of Steel (1975), foi responsável pela criação das capas dos álbuns do Rush. Na imagem da capa, se vê carregadores transportando três quadros. O primeiro à esquerda, uma imagem de Joana D’Arc sendo queimada na fogueira; o segundo é a pintura Um Amigo Em Necessidade (1903), do pintor americano Cassius Marcellus Coolidge (1844 – 1934); e o terceiro, ao centro, é uma reprodução da logo Starman, presente na contracapa do álbum 2112 (1976). Os quadros carregados são observados por um grupo de pessoas que parecem emocionadas com o que veem. O prédio ao fundo que aparenta ser um museu, na verdade é o edifício da Assembleia Legislativa de Ontário, na cidade Toronto, no Canadá. A contracapa do álbum mostra uma equipe de filmagem registrando a “imagem em movimento” de toda a cena da capa.

Assembleia Legislativa de Ontário, em Toronto, Canadá: a entrada do palácio
aparece na foto da capa do álbum Moving Pictures.

Moving Pictures começa com aquela que se tornou o maior sucesso da carreira do Rush, “Tom Sawyer”. A música foi composta a partir do poema “Louis, The Lawyer”, escrito por Pye Dubois, integrante da banda canadense Max Webster. Foi o próprio Dubois quem ofereceu o poema a Neil Peart, letrista e baterista do Rush, para que o poema se transformasse em música. Peart fez algumas alterações nos versos, que musicados pelo baixista e tecladista Geddy Lee e pelo guitarrista Alex Lifeson, o poema virou uma música e ganhou foi rebatizado para “Tom Sawyer”. O título é baseado no personagem dos livros do escritor americano Mark Twain (1835-1910). Embora os sintetizadores tenham uma presença marcante, eles dividem o protagonismo com a bateria, o baixo e a guitarra, mantendo assim a essência roqueira da faixa. Impressiona a performance de Neil Peart na bateria, fazendo viradas sensacionais e compassos rítmicos complexos. A curiosidade fica por conta de “Tom Sawyer” ter sido tema de abertura do seriado de TV MacGyver – Profissão: Perigo no Brasil nos anos 1980.

Apenas no Brasil, a faixa "Tom Sawyer" foi tema de abertura do seriado 
MacGyver - Profissão: Perigo, exibido pela
TV Globo nos anos 1980.
 

“Red Barchetta” tem a sua letra, escrita por Peart, inspirada no conto futurista “A Nice Morning Drive”, de Richard S. Foster. A letra da música trata sobre uma história que acontece no futuro quando uma lei proíbe a circulação de carros convencionais. No entanto, o personagem principal da música decide burlar a lei ao pegar um carro antigo do seu tio, uma Barchetta vermelha, que mantinha escondido num sítio, e sair à toda velocidade pela estrada. Mas logo é seguido por dois carros voadores, com quais trava uma perseguição sensacional. Barchetta, em italiano, quer dizer “barco pequeno” ou ‘barquinho”, é um termo usado na indústria automobilística para os carros de traseira curta, capô longo, sem teto e com apenas dois lugares. A Ferrari 166 MM, de 1948, é considerada a primeira barchetta e um dos carros preferidos de Neil Peart. O veículo foi a inspiração para Peart descrever o carro da letra da música.

A faixa seguinte, “YYZ”, é a única instrumental presente em Moving Pictures. O título nada mais é do que o código do aeroporto internacional de Toronto, no Canadá. Dizem que os membros da banda costumavam ficar felizes quando viam a inscrição YYZ nas suas bagagens, pois significava que estavam voltando para casa após uma exaustiva turnê. 

“Limelight” é a faixa que encerra o lado 1 do álbum, e começa com um riff de guitarra, que é considerado um dos preferidos de Alex Lifeson nos discos do Rush. Escrita por Neil Peart, a letra de “Limelight” é autobiográfica, e trata sobre o desconforto e a ilusão que a fama pode trazer para a vida pessoal do artista: “Living in a fisheye lens / Caught in the camera eye / I have no heart to lie / I can't pretend a stranger / Is a long-awaited friend”. (“Viver sob o foco de uma lente / Pego pelo olho da câmera / Eu não tenho coragem para mentir / Não posso fingir que um estranho / É um amigo há muito tempo aguardado”).

Ferrari 166 MM, fabricado em 1948: apelidado de barchetta, o carro italiano
foi inspiração para a música "Red Barchetta".

O lado 2 começa com “The Camera Eye”, a faixa mais longa do álbum, que é dividida em duas partes: parte 1 é “Nova York”, e parte 2 “Londres”. Ao escrever a letra, Neil Peart descreve as suas percepções sobre essas duas cidades. “The Camera Eye” surgiu a partir de duas músicas que durante o processo árduo de criação dos arranjos, foram conectadas e transformadas numa só música. Foi a última música com mais de dez minutos gravada pelo Rush.

A faixa seguinte, “Witch Hunt”, é a mais sombria de Moving Pictures. As guitarras pesadas e a tensão criada pelos sintetizadores ajudam a criar o clima sombrio que a música possui. Os versos de “Witch Hunt” tratam sobre xenofobia, perseguição, intolerância e da ameaça que representam os grupos supremacistas: “Quick to judge / Quick to anger /Slow to understand / Ignorance and prejudice / And fear walk hand in hand”. (“Rápidos para julgar / Rápidos para se irritar / Lentos para entender / Ignorância e preconceito / E medo caminham de mãos dadas”). “Witch Hunt” dá início a uma trilogia de canções intitulada “Fear”, que aborda assuntos e sentimentos relacionados ao medo. A ordem das canções dessa trilogia é inversa: “Witch Hunt” é a parte 3, “The Weapon” é parte 2 e está no álbum Signals (1982), e “The Enemy Within” é a parte 1 e está no álbum Grace Under Pressure (1984). Mas, a trilogia se expandiu e virou na prática uma tetralogia ao ganhar uma quarta e última que é a música “Freeze”, do álbum Vapor Trails (2002). Uma curiosidade em “Witch Hunt” é que o designer gráfico da capa de Moving Pictures, Hugh Syme, tocou sintetizador.

Última faixa do álbum, “Vital Signs” é marcada pelo riff de guitarra de reggae de Lifeson que remete ao The Police. É impossível não notar a influência da banda inglesa nesta música do Rush.

Rush em apresentação no International Amphitheater, em Chicago, Illinois, 
Estados Unidos, em fevereiro de 1981, durante turnê Moving Pictures.

A recepção de Moving Pictures por parte da crítica foi positiva. Comercialmente, Moving Pictures foi um grande sucesso. Alcançou o primeiro 1º lugar no Canadá, onde vendeu 400 mil cópias. Nos Estados Unidos, foi 3º lugar na parada da Billboard 200, chegando a vender 4 milhões de cópias e assim conquistando o disco quádruplo de platina pela RIAA (Recording Industry Association of America). Moving Pictures é o álbum mais vendido da discografia do Rush.

Em outubro de 1981, em pleno sucesso de Moving Pictures, foi lançado o segundo álbum gravado ao vivo do Rush, o álbum duplo Exit ... Stage Left, que inclui registros gravados de um show do Rush no The Apollo, em Glasgow, Escócia, em junho de 1980, durante turnê de Permanent Waves, e outro no The Forum, em Montreal, Quebec em março de 1981, apresentação que fez parte da turnê de Moving Pictures.

O Rush tocou pela primeira e única ao vivo o repertório inteiro de Moving Pictures na Time Machine Tour, turnê internacional que começou em junho 2010 e encerrou-se em junho de 2011. A turnê passou por Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Europa, Escandinávia e América do Sul.

 

Faixas

Todas as músicas por Geddy Lee e Alex Lifeson, e letras de Neil Peart, exceto em “Tom Sawyer” (Peart e Dubois)


Lado 1

  1. "Tom Sawyer"
  2. "Red Barchetta"
  3. "YYZ" (instrumental) 
  4. "Limelight"      

Lado 2

  1. "The Camera Eye
  2. "Witch Hunt" (Parte 3 de "Fear")
  3. "Vital Signs"


Rush: Geddy Lee (vocais, baixo, sintetizador polifônico Oberheim, sintetizador OB-1, Mini Moog, pedais Taurus), Alex Lifeson (guitarras e violões de 6 e 12 cordas, pedais Taurus )

Neil Peart (bateria, timbales, bumbo gong Tama, sinos de orquestra, glockenspiel, carrilhão, sinos, crótalos, cow-bells, claves)

 

Referências:

Revista Bizz – junho/1992 – Edição 83, Editora Azul)´


Ouça na íntegra o álbum Moving Pictures

"Tom Sawyer" (videoclipe oficial)

"Limelight" (videoclipe original)

"Vital Signs" (videoclipe original)








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