“All Things Must Pass” (Apple/EMI, 1970), George Harrison
Por Sidney Falcão
Durante os
anos em que integrou os Beatles, George Harrison (1943-2001) teve uma
participação muito limitada como compositor na banda. Mas isso não era por
falta de talento para compor, preguiça ou por baixa produção de canções, muito
pelo contrário. No decorrer da sua carreira nos Beatles, George Harrison compunha
cada vez mais e evoluía como compositor. O problema estava em John Lennon (1940-1980) e
Paul McCartney, dupla que exercia o monopólio da quantidade de canções que
entravam nos álbuns dos Beatles. Havia uma hegemonia da dupla Lennon-McCartney
nos álbuns da banda. A George, cabia incluir em média duas canções de sua
autoria em cada álbum dos Beatles. Como compunha muito, mas seus companheiros
de banda escolhiam poucas canções suas, George foi acumulando ao longo dos anos
uma grande quantidade de canções recusadas.
No entanto,
aquele farto material acumulado acabaria sendo útil mais tarde a George, que
somado a novas canções compostas após o fim dos Beatles, resultaram no
fantástico álbum triplo All Things Must Pass, lançado em
novembro de 1970, e considerado o melhor álbum solo de um beatle. A obra foi
uma grande e robustíssima oportunidade de George Harrison mostrar ao público e
para a crítica, o quanto ele era um compositor profícuo e de qualidade, mas que
era tolhido por Lennon e McCartney nos Beatles.
George Harrison (segundo da esquerda para a direita) nos Beatles em 1969: criatividade tolhida. |
Para se
chegar a All Things Must Pass no entanto, é preciso voltar no
tempo para entender como George alcançou um status
tão elevando como artista, as influências que ele sofreu para que evoluísse
como compositor e como músico, e sobretudo, como a espiritualidade interferiu
na sua arte.
Após o
lançamento do “álbum branco” dos Beatles, em novembro de 1968, George Harrison
partiu para uma viagem aos Estados Unidos, e aproveitou a oportunidade para
visitar Bob Dylan, em sua fazenda, em Woodstock, estado de Nova York. Dylan se
recuperava de um grave acidente de moto que sofreu em julho de 1966, que lhe
custou algumas vértebras quebradas e o afastou dos palcos temporariamente. Na
época, a The Band estava passando uma temporada na fazenda de Dylan gravando o
seu segundo álbum. A visita de George a Dylan, de quem era um grande admirador,
acabou lhe sendo muito inspiradora e iria influenciar a sua forma de fazer
música a partir de então. George teve contato direto com os métodos de composição
de Dylan e da The Band. Daquela visita, nasceu uma amizade entre George e
Dylan, e até mesmo parceria musical.
Bob Dylan recebendo uma visita ilustre em seu rancho, em 1968. |
Se dentro dos Beatles, George não tinha espaço como compositor, fora não só havia quem queria gravar suas canções como ele começava a desenvolver trabalhos com outros artistas, desde produção de discos a participação em shows. Harrison produziu discos de Billy Preston e da cantora Doris Troy - que também gravaram canções suas – compôs com Eric Clapton a música “Badge”, gravada pelo banda Cream, da qual Clapton foi integrante. No final de 1969, George Harrison embarcou numa curta turnê Delaney & Bonnie and Friends, encabeçada pela dupla Delaney & Boonie, e que contava com convidados ilustres como Eric Clapton, Leon Russell, Dave Mason, Bobby Whitlock, Carl Radle e Jim Gordon. Foi durante essa turnê que George aprendeu com Delaney Bramlett, da dupla com Boonie, a tocar slide guitar, instrumento cujo som se tornaria a partir de então uma marca na musicalidade do ex-beatle.
Da esquerda para a direita: Eric Clapton, Bonnie Bramlett, Delaney Bramlett e George Harrison, em 1969. |
Em janeiro
de 1970, George mostrou ao produtor Phil Spector, fitas demos com canções que
ele vinha compondo. As mais antigas como “Isn’t It A Pity” e “Art Of Dying”,
foram compostas por George em 1966. Haviam também canções que chegaram a ser
ensaiadas pelos Beatles para o projeto Get Back, mas que acabaram recusadas
como “All Things Must Pass”, “Hear Me Lord” e “Let It Down”. No farto material
conferido por Spector, os estilos musicais variavam: rock, country, folk music,
gospel, música indiana e canções em estilo Motown.
Com o
próprio George Harrison na produção e Phil Spector na coprodução, as gravações
de All
Things Must Pass começaram no final de maio de 1970, nos estúdios Abbey
Road. No começo daquele mês, foi lançado Let It Be, o último álbum dos Beatles,
e que foi produzido pelo mesmo Phil Spector.
Para
acompanha-lo nas gravações, Harrison cercou-se de músicos ilustres como Eric
Clapton, Ringo Starr (seu ex-colega de Beatles), o tecladista Billy Preston, o
baixista e artista gráfico Klaus Voorman (criador da capa de Revolver,
dos Beatles), a banda Badfinger, o tecladista Gary Wright, Pete Drake (no pedal
steel), o saxofonista Bobby Keys, e os futuros astros do rock, mas que naquele
momento eram “ilustres desconhecidos” como Phil Collins (na percussão), o
baterista Alan White (futuro Yes), e o guitarrista Peter Frampton (tocou violão
em uma das faixas do álbum).
Na produção
deste álbum, Phil Spector fez uso da sua famosa “wall of sound” (“muralha de
som”), uma técnica de produção que criava uma massa sonora bastante compacta,
através de orquestração, de uma banda de apoio e vocais de apoio.
O produtor Phil Spector e George Harrison. |
Lançado
originalmente como álbum triplo, All Things Mus Pass traz o terceiro
disco como um “disco bônus” intitulado Apple
Jams, que contém jam sessions
gravadas no estúdio.
O disco 1
começa com “I’d Have You Anytime”, composta por George Harrison e Bob Dylan, na
época em que o Harrison foi visitar Dylan em sua fazenda em Woodstock. A “I’d
Have You Anytime” é uma linda balada romântica que conta com a participação de
Eric Clapton fazendo solos de guitarra bastante sedutores, e que lembram os
solos que George fez em “Something”, canção do álbum Abbey Road (1969), dos
Beatles.
Em seguida
vem o grande sucesso do álbum e o maior da carreira solo de George Harrison,
“My Sweet Lord”, canção na qual o ex-beatle busca estabelecer contato com Deus.
O interessante nesta música, é que George ao mesmo tempo que procurar expressar
a sua fé, procura retratar a convivência inter-religiosa: na primeira parte da
canção, o coral repete várias vezes a palavra “aleluia”, expressão tão comum
nas crenças judaico-cristãs. Na segunda parte, o mesmo coral passa a entoar o
mantra hare krishna, filosofia espiritual adotada por George Harrison por volta
de 1966, e que iria exercer uma grande influência na arte do músico inglês.
Desde então, George passou a seguir com muito fervor a filosofia de vida
hinduísta até a sua morte, em 2001. George não era um hare krishna convertido,
mas seguia os ensinamentos, o que não impedia, no entanto, de ter um profundo
respeito a Jesus Cristo, o que explica a presença do mantra hare krishna e a
expressão “aleluia” em “My Sweet Lord”.
Jesus Cristo e Krishna: referências religiosas para "My Sweet Lord". |
“Wah-Wah” é
um rock cujo título faz referência ao pedal de guitarra wah-wah que cria efeitos no som do instrumento. A letra é uma
crítica sutil de Harrison a Lennon e McCartney, que na época dos Beatles,
exerciam uma hegemonia na banda no que se refere à quantidade de canções nos
discos da banda.
Fechando o
lado 1 do disco 1, “Isn't It A Pity” é um rock balada que aparece no álbum em
duas versões. Nesta primeira, a versão é longa, cerca de sete minutos. Os
versos tratam sobre decepção e fim de um relacionamento. Mas há quem afirme que
os versos não se tratariam necessariamente sobre relação de um casal que
deteriorou, mas sim do melancólico dos Beatles.
John Lennon e Paul McCartney: alvos de crítcas sutis em "Wah-Wah". |
O lado 2 do
disco abre com ‘What Is Life” e sua melodia alegre e festiva. Os versos parecem
ter um sentido dúbio. Tanto podem se referir ao amor romântico como ao amor
espiritual, neste caso, se referindo a Deus. O destaque fica para o riff de guitarra de George Harrison,
cheio de efeitos pedal fuzz de
distorção.
A bonita
balada folk “If Not For You” é uma canção de Bob Dylan que foi gravada por
George de última hora. Dylan havia gravado a canção para o seu álbum New
Morning, de 1970. George acompanhou as gravações, e encantado com ela,
decidiu gravá-la para All Things Must Pass. A letra é
sobre um homem que revela o quanto a mulher que ama foi capaz de transformar a
sua vida para melhor.
“Behind That
Locked Door” é uma canção composta por George Harrison que trata sobre amizade
e companheirismo, e foi dedicada a Bob Dylan. Na época em que George compôs a
canção, Dylan estava se recuperando do acidente grave de moto que sofreu em
1966, e que fez o cantor americano se afastar dos palcos por mais de quatro
anos. De uma certa forma, tal situação havia afetado psicologicamente o
artista. Na letra da canção, George procura demonstrar apoio e incentivo ao
amigo para que ele saia do isolamento e se abra para o mundo: “The love you are blessed with / This
world's waiting for / So let out your heart, please, please / From behind that
locked door” (“Pelo amor que você foi
abençoado / Este mundo está esperando / Então deixe seu coração sair, por
favor, por favor / De trás daquela porta trancada”).
“Let It
Down” está entre as canções de George rejeitadas pelos Beatles e que ele
decidiu gravar para All Things Must Pass. Os versos parecem tratar sobre o
conflito entre os prazeres extraconjugais com a fé e o casamento. Quando
Harrison compôs a canção, ele era casado com a modelo Patty Boyd, e estava
tendo um caso extraconjugal com a modelo francesa Charlotte Martin.
Encerrando o
lado 2, e consequentemente o disco 1, a balada folk rock “Run Of The Mill”,
canção em que George Harrison trata sobre o clima pesado e difícil nos últimos
anos dos Beatles. Ao mesmo tempo, George aborda indiretamente na canção o
esfacelamento da sua amizade com Paul McCartney, e ressalta a importância de
sermos responsáveis pelo nosso próprio destino.
George Harrison tocando durante as sessões de gravação do álbum All Things Must Pass. |
“Beware Of
Darkness” é a primeira faixa do disco 2 e que é também a primeira do lado 3. A
filosofia e a espiritualidade hindus se fazem presentes em “Beware Of
Darkness”, canção que faz alerta sobre os cuidados que devemos ter com as
armadilhas do mundo material com a ganância, as trapaças e os pensamentos
negativos. Em “Apple Scruffs”, Harrison faz uma singela homenagem às “apple
scruffs”, as garotas fanáticas pelos Beatles que costumavam fazer vigília em frente
aos estúdios Abbey Road e à Apple Records, em Londres, apenas para verem os
seus ídolos.
“Ballad Of
Sir Frankie Crisp (Let It Roll)” é uma balada folk rock dedicada ao excêntrico
Sir Frank Crisp, um rico advogado que era também advogado, colecionador e
microscopista, e que foi proprietário da mansão Friar Park, em Henry-on-Trames,
construída no século XIX. No início de 1970, essa mansão foi comprada por
George Harrison. A letra é quase um passeio pela mansão e jardim da
propriedade. “Ballad Of Sir Frankie Crisp (Let It Roll)” possui uma linha
melódica bastante agradável, onde o destaque fica para o piano de Bobby
Whitlock, o órgão Hammond de Billy Preston e o piano elétrico de Gary Wright.
Em “Awaiting
On You All”, George afirma que Deus está à espera de todos nós, e que não é preciso
de uma igreja ou templo, o que pode ser entendido como uma crítica indireta às
grandes organizações religiosas. Fechando o lado 3, “All Things Must Pass”, a
canção que dá título ao álbum, e que versa sobre a transitoriedade da vida e as
mudanças pelas quais passamos durante a nossa existência.
O lado 4 inicia
com “I Dig Love” e seus versos que parecem pregar o “amor livre”, tão em voga
em tempo de contracultura, mas que ao mesmo tempo, contrasta com os temas
espiritualistas das outras canções de Harrison. A reencarnação é claramente
abordada em “Art Of Dying”, através de versos que afirmam que saímos deste
mundo e retornamos pelo desejo de sermos uma entidade perfeita. A faixa
seguinte é uma reprise de “Isn’t It A Pity”, porém numa versão mais curta.
“Hear Me
Lord” é uma balada que fecha o lado 4 e também o disco 2 do álbum. Escrita por
George em 1969, quando ainda era membro dos Beatles, “Hear Me Lord” é como uma
oração em forma de canção em que o cantor pede ao Senhor para ser ouvido e o
seu perdão.
George Harrison em detalhe do poster que vinha com o álbum triplo. |
O disco 3 de
All
Things Must Pass foi intitulado Apple
Jam por trazer apenas jam sessions
feitas no estúdio da Apple Records com os músicos convidados. Traz cinco
faixas, quadro delas instrumentais e apenas um cantada. Na prática, este
terceiro disco funciona como um “disco bônus”.
A primeira
faixa do lado 5 e que é também a primeira do disco 3, é o jazz rock “Out Of The
Blue”, uma faixa instrumental de pouco mais de 11 minutos, onde merecem
destaque o saxofone, o piano, o órgão e a bateria. Única faixa cantada do disco
3, “It’s Johnny’s Birthday” é uma curta e debochada canção em homenagem aos 30º
aniversário de John Lennon, e foi composta baseada na linha melódica de
“Congratulation”, sucesso do cantor Cliff Richard, em 1968. “Plug Me In” é
faixa que fecha o lado 5 do álbum, um rock’n’roll instrumental vibrante que
traz algo que parece ser um duelo de solos de guitarras.
O lado 6
começa com “I Remember Jeep”, em que efeitos sonoros psicodélicos dão início à
música e logo dão lugar ao ritmo de rock’n’roll instrumental bem ao estilo anos
1950. Solos de guitarra pontuam toda a faixa. A música conta com a participação
do baterista Ginger Baker, ex-Cream. E é no ritmo intenso e animado de
rock’n’roll de “Thanks For The Pepperoni” que All Things Must Pass
chega ao fim.
Lançado em
27 de novembro de 1970, All Things Must Pass teve uma ótima
recepção da crítica e de público. O jornalista Ben Gerson, da revista Rolling Stone, descreveu o álbum triplo
como “um clássico de proporções
Spectorianas, Wagneriano, Bruckneriano, música de topos de montanhas e vastos
horizontes”. A mesma Rolling Stone
saudou na época All Things Must Pass como
“uma extravagância de piedade, sacrifício
e alegria, cuja pura magnitude e ambição fazem dele a ‘guerra e paz’ do rock”.
A faixa “My
Sweet Lord” foi um sucesso mundial, cujo single atingiu o 1º lugar nos Estados
Unidos e no Reino Unido, sendo assim o primeiro single de um ex-beatle a
alcançar esse posto. Só nos Estados Unidos, o single de “My Sweet Lord” vendeu
mais de seis milhões de cópias.
Capa do single de "My Sweet Lord". |
O fato de
ser um álbum triplo, não inibiu o público a adquirir All Things Must Pass. Com
um mês de lançamento, o álbum foi agraciado com disco de ouro nos Estados
Unidos por chegar à marca de 500 mil cópias vendidas. Ao todo, All
Things Must Pass vendeu cerca de 6 milhões de cópias nos Estados
Unidos.
Apesar do
sucesso comercial e do reconhecimento da crítica pelo seu álbum triplo, nem
tudo foi um “mar de rosas” para George Harrison com All Things Must Pass. O
ex-beatle foi processado pela Bright Tunes, editora que detinha os direitos da
canção “He’s So Fine”, canção que fez sucesso em 1963 com as Chiffons. A Bright
Tunes afirmou que “My Sweet Lord” era um plágio de “He’s So Fine”. O processo
foi levado aos tribunais em 1976, nos Estados Unidos. Harrison negou que
tivesse plagiado. Mesmo assim, o juiz determinou que o músico havia feito um
plágio subconscientemente. Harrison perdeu o processo.
Essa batalha judicial, no entanto, não tirou o prestígio e a relevância de All Things Must Pass. O álbum triplo de George Harrison é considerado o melhor álbum solo lançado por um ex-beatle. All Things Must Pass foi incluído na lista dos 200 álbuns definitivos do Hall da Fama do Rock and Roll.
Faixas
Todas as
canções são de autoria de George Harrison, exceto as indicadas.
Disco 1
Lado 1
- "I'd Have You Anytime" (Harrison, Bob Dylan)
- "My Sweet Lord"
- "Wah-Wah"
- "Isn't It a Pity (Version One)"
Lado 2
- "What Is Life"
- "If Not for You" (Dylan)
- "Behind That Locked Door"
- "Let It Down"
- "Run of the Mill"
Disco 2
Lado 3
- "Beware of Darkness"
- "Apple Scruffs"
- "Ballad of Sir Frankie Crisp (Let It Roll)"
- "Awaiting on You All"
- "All Things Must Pass"
Lado 4
- "I Dig Love"
- "Art of Dying"
- "Isn't It a Pity (Version Two)"
- "Hear Me Lord"
Disco 3 (Apple Jam)
Lado 5
- "Out of the Blue" (Jim Gordon - Carl Radle - Bobby Whitlock - Eric Clapton - Gary Wright - George Harrison - Jim Price - Bobby Keys - Al Aronowitz)
- It's Johnny's Birthday" (Martin- Coulter)
- "Plug Me In" (Jim Gordon - Carl Radle - Bobby Whitlock - Eric Clapton - Dave Mason - George Harrison)
Lado 6
- "I Remember Jeep" (Ginger Baker - Klaus Voormann - Billy Preston - Eric Clapton - George Harrison)
- "Thanks for the Pepperoni" (Jim Gordon - Carl Radle - Bobby Whitlock - Eric Clapton - Dave Mason - George Harrison)
Referências:
- A batalha pela alma dos Beatles – Peter Doggett, 2012, Editora Nossa Cultura
- www.georgeharrison.com
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