“Estúpido Cupido” (Odeon, 1959), Celly Campello
Famosa pelos sambas-canções falando das dores do amor
carregadas de versos melodramáticos, Nora Ney (1922-2003) foi, no entanto, a
primeira voz a gravar um rock no Brasil. Em outubro de 1955, ela gravou, em inglês,
“Rock Around The Clock”, grande sucesso de Bill Haley & His Comets que
estava varrendo os Estados Unidos de ponta a ponta naquele mesmo ano. A
gravação de Nora dava à luz o rock brasileiro.
Porém, o grande ídolo do rock brasileiro estava por vir pouco
depois, e assim como Nora Ney, também era mulher, mais precisamente, uma garota
de 16 anos: Celly Campello (1942-2003). Com sua voz doce, jeito meigo e
carismático, Celly se tornaria ainda adolescente, o primeiro grande fenômeno de
massa do rock brasileiro. Entre 1959 e 1962, emplacou vários rocks ingênuos e canções
românticas “açucaradas” que embalaram mentes e corações de milhões de jovens de
norte a sul do Brasil naqueles “anos dourados”.
Nascida em 18 de junho de 1942, em São Paulo, Célia Bennelli
Campello, ainda bebê, mudou-se com sua família para Taubaté, interior do estado
de São Paulo. Aos seis anos de idade, a pequena Célia fez a sua primeira
apresentação ao vivo cantando na Rádio Cacique, em Taubaté. Dali em diante,
sucederam-se as apresentações nas emissoras de rádio de Taubaté, juntamente com
seu irmão, Sérgio Campello, mais velho do que ela. No comecinho de sua
adolescência, Célia passa a apresentar o seu próprio programa na Rádio Cacique,
ao lado do irmão Sérgio.
Em 1956, Sérgio Campello deixa Taubaté e parte para São
Paulo para buscar novas possibilidades na carreira artística. Dois anos depois,
consegue um contrato com a gravadora Odeon para gravar um disco de 78 rotações
com duas canções. Teve a ideia de convidar a irmã Célia, que ainda morava em
Taubaté, para gravar a outra canção. Sérgio gravou “Forgive Me”, enquanto que
Célia gravou “Handsome Boy”. Os dois foram acompanhados nas gravações por Mário
Gennari e seu conjunto. O próprio Mário Gennari foi também o produtor. O
radialista Hélio Alencar, da Rádio Nacional de São Paulo, foi quem criou os
nomes artísticos para os dois irmãos: Sérgio passou a ser conhecido como Tony
Campello, e Célia, virou Celly Campello. E foi com esses nomes artísticos que o
primeiro disco dos irmãos Campello chegou às lojas, em junho de 1958, e vendeu
mais de 38 mil cópias. Em outubro do mesmo ano, é lançado um disco de 78
rotações apenas de Celly, com as canções “Devotion” e “O Céu Mudou de Cor”.
Mas o salto para o sucesso de Celly Campello acontece com o
lançamento do disco de 78 rotações com “Secret” e “Estúpido Cupido”, em março
de 1959. O lado B que trouxe “Estúpido Cupido”, versão em português feita por
Fred Jorge para “Stupid Cupid”, composta por Neil Sedaka e Howard Greenfield, e que fez um grande sucesso
mundial na voz de Connie Francis, em 1958. Aqui no Brasil, no entanto, a música
sobre o cupido e suas flechas do amor catapultou Celly para o estrelato, aos 16
anos. O disco com “Estúpido Cupido” chegou à incrível marca de 120 mil cópias,
tornando Celly o primeiro grande fenômeno do rock brasileiro. Assim como ela,
seu irmão, Tony Campello, prosseguia a sua carreira de rock star brasileiro com
grande êxito.
Em maio de 1959, Celly estreou o seu próprio programa de TV,
o Crush Em Hi-Fi, na TV Record de São
Paulo, comandado por ela e seu irmão Tony, e no qual recebiam convidados, todos
eles ligados ao nascente rock brasileiro como Wilson Miranda, Sérgio Murilo,
George Freedman, Demétrius, Ronnie Cord e The Jordans.
Os irmãos Celly e Tony Campello em divulgação de disco em uma emissora de rádio, em 1959. |
Finalmente, em setembro de 1959, a gravadora Odeon lançava o
primeiro álbum de Celly Campello, Estúpido Cupido, título da música
que era o grande sucesso do início da carreira da jovem cantora, e uma das
músicas mais tocadas daquele ano no Brasil.
Estúpido Cupido é um álbum que reflete muito bem o jeito meigo
e carismático da cantora. É recheado de rocks e canções românticas com um
frescor juvenil. Embora seja um disco precursor do rock brasileiro, Estúpido
Cupido está distante da transgressão do rock americano, e se aproxima
mais do romantismo do rock italiano. Se em tese, o rock é a mola mestra de Estúpido
Cupido, o conteúdo do álbum passeia por outros gêneros musicais como
bolero, calypso e rumba, além é claro, das baladas românticas carregadas de
muito sentimentalismo adolescente. A grande maioria das músicas são versões em
português ou regravações em inglês de canções do rock e pop estrangeiros da
época. As versões em português são de Fred Jorge, que se tornou um especialista
no assunto. Um detalhe interessante no álbum é que das doze faixas, cinco são
cantadas por Celly em inglês.
O álbum começa muito bem com a faixa-título, já que havia
sido lançada num disco de 78 rotações que vendeu mais de 100 mil cópias. Em
“Estúpido Cupido”, a canção, Celly canta de maneira graciosa e muito bem afinada.
Aliás, chama a atenção como Celly era tão bem afinada, apesar da pouca idade. “Estúpido
Cupido” é uma das melhores versões feitas em português para uma canção
estrangeira, e que acabou sendo incorporada na música brasileira.
O estrelato de Celly Campello fez a jovem cantora estampar várias capas de resvista da época. |
Após o alegre e animado rock “Estupido Cupido”, vem o bolero
“The Secret”, gravado originalmente por Gordon McRae, em 1958. Apesar da versão
original ter uma inclinação para o bolero, o arranjo era bem mais estilizado,
enquanto que a versão de Celly, gravada em inglês, é um bolero mais carregado
de “latinidade”. O rock “Muito Jovem” é uma versão em português de “Just Young”,
sucesso de 1958 de Paul Anka. Nessa canção, Celly se passa por uma garota que
tem medo do que as pessoas vão falar por causa de um beijo.
“Túnel do Amor” é uma versão em português de “Tunnel of
Love”, canção gravada originalmente por Doris Day, em 1958, e que foi tema do
filme de mesmo nome, estrelado pela própria Doris ao lado de Richard Widmark.
Celly canta “Tunel do Amor” com muita graça e acompanhada por um coro
masculino. A canção foi um dos maiores sucessos do álbum e da carreira de Celly
Campello.
Ao olhar “Handsome Boy” na lista de faixas do álbum, alguém poderá
imaginar que é mais uma canção “gringa” gravada por Celly Campello. Contudo,
embora escrita em inglês, “Handsome Boy” foi composta por compositores
brasileiros, Mário Gennari Filho e Celeste Novaes. Mário é o mesmo que produziu
e comando o conjunto que acompanhou Celly nas gravações do álbum. A música é um
misto de rumba e calypso.
“Who's Sorry Now” é uma canção antiga, de 1923, gravada pela
primeira vez por Ted Snyder. A partir daí, teve várias regravações, sendo a de
Connie Francis, de 1957, a de maior sucesso. Celly regravou a canção, porém
cantando no idioma original, o inglês. Enquanto a versão de Connie é mais pop e
leve, a de Celly é mais lenta, bem ao estilo do rock balada dos anos 1950, e
com uma dose a mais de carga dramática do que a versão de Connie.
O lado B da versão LP de Estúpido Cupido começa
com o bolero “Broto Já Chorar” (uma versão em português de "Heartaches At Sweet Sixteen", sucesso na voz de Kathy Linden, em 1959) que trata sobre uma garota que tem
amor próprio e não quer saber rapaz mulherengo. “Fale-me
Com Carinho” é uma versão em português da canção francesa “Dis-moi Quelque
Chose de Gentil”, cuja versão original foi gravada por Solange Berry, e é uma
canção sobre juras e promessas de amor. “Querido Cupido” seria uma espécie de
“continuação” de “Estúpido Cupido”. Desta vez, Celly não escapa das flechadas
de amor do cupido. Destaque para as harmonizações vocais de apoio. “Tammy” é uma
balada romântica lindamente cantada por Celly Campello em inglês, como no
original, gravado por Debbie Reynolds, em 1957. Os arranjos e vocalizações são
muito bem elaborados, e seguem o padrão americano da época.
Estrelas do rock brasileiro, os irmãos Celly Campello e Tony Campello com a cantora norte-americana Brenda Lee (ao centro), que estava visitando o Brasil em 1959. |
“Melodie d’Amour” é uma canção típica das Antilhas
Francesas, composta em francês nos anos 1930 com o título original “Maladie d'Amour”.
A canção só veio ganhar fama internacional em 1949, através da gravação de
Henri Salvador (1917-2008). Em 1957, foi lançada uma versão em inglês como
“Melodie D’Amour”, gravada pelo grupo vocal americano The Ames Brothers. Celly
canta em inglês, e os arranjos instrumentais da música seguem bem ao estilo do
beguine, gênero musical típico das ilhas de onde surgiu a canção. Os arranjos
da versão brasileira são bem diferentes da versão artificial e pouco empolgante
da dos Ames Brothers.
Estúpido Cupido termina com “Lacinhos Cor-de-Rosa”, outro
grande sucesso da carreira de Celly Campello, e outra versão em português de
canção estrangeira presente no álbum. A música é uma versão de “Pink Shoe
Laces”, lançada pela cantora pop adolescente Dodie Stevens, no comecinho de
1959. “Lacinhos Cor-de-Rosa” é um rock’n’roll sobre uma garota bem novinha que
tenta conquistar com seu sapatinho com laços cor-de-rosa, um jovem e rebelde
playboy que desfila pelas ruas com a sua lambreta. Porém, a garotinha tem seus
sonhos frustrados porque o rapaz prefere garotas mais velhas.
Em abril de 1960, Celly lança o seu segundo álbum, Broto
Certinho, cujo grande sucesso é “Banho de Lua”. Nos próximos dois anos,
Celly Campello desfruta de um grande prestígio, e se torna uma figura quase que
onipresente. Faz grandes turnês nacionais e até pela América do Sul. Participa
de dois filmes de Mazzaropi, grava um jingle
do achocolatado Toddy com seu irmão
Tony Campello, e uma fábrica de brinquedos lança a boneca Celly, que apareceu na capa do terceiro álbum da cantora, A
Bonequinha Que Canta, de 1960.
Casamento de Celly Campello com o contador José Eduardo Chacon, em 1962. |
Depois de um período de fama e muita exposição, Celly
Campello casou-se em 1962 com o contador da Petrobras, José Eduardo Gomes
Chacon, e abandonou a carreira artística aos vinte anos. Durante a década de
1960, chegando a lançar um álbum em 1968, mas sem grande repercussão. Em 1976,
fez um grande retorno à carreira musical por causa do impacto do sucesso da
telenovela Estúpido Cupido, da TV
Globo, ambientada no começo dos anos 1960. A telenovela provocou um revival dos primórdios do rock
brasileiro, e artistas daquela geração como Celly Campello, Tony Campello,
Carlos Gonzaga, Ronnie Cord entre outros, foram redescobertos. Celly chegou a
fazer turnê pelo Brasil, lançar discos e fazer apresentações na TV, mas após a
fama da novela, a cantora se afastou novamente da carreira artística.
Em março de 2003, aos 60 anos, Celly Campello faleceu vítima
de câncer de mama. Mesmo tendo abandonado a carreira de sucesso, teve um
casamento feliz, construiu uma família e chegou a conhecer o primeiro neto, um
ano antes de morrer. Ou seja, realizou o sonho que qualquer garota de sua
geração dos ditos “anos dourados” sonhava. Mesmo com uma carreira curta, e com
alguns breves retornos, Celly deixou o seu legado na história do rock
brasileiro.
Faixas
Lado A
- “Estúpido Cupido” (Stupid Cupid) (Neil Sedaka - Howard Greenfield - versão: Fred Jorge)
- “The Secret” (Joe Lubin - I. J. Roth)
- “Muito Jovem” (Just Young) (Lya S. Roberts - versão: Fred Jorge)
- “Túnel do Amor” (Tunnel of Love) (Patty Fischer - Bob Roberts - versão: Fred Jorge)
- “Handsome Boy” (Mário Gennari Filho - Celeste Novaes)
- “Who's Sorry Now” (Ted Snyder - Bert Kalmar - Harry Ruby)
Lado B
- “Broto Já Sabe Chorar” (Heartaches at Sweet Sixteen) (Reld - Kosloff - Springer - versão: Fred Jorge)
- “Fale-me Com Carinho” (Dis-moi Quelque Chose de Gentil) (Paul Misrak - Andre Hornez - versão: Espírito Santo)
- “Querido Cupido” (Fred Jorge - Archimedes Messina)
- “Tammy” (Jay Livingston - Ray Evans)
- “Melodie d'Amour” (Henry Salvador - Marc Lanjean)
- “Lacinhos Cor-de-Rosa” (Pink Shoe Laces) (Mickie Grant - versão: Fred Jorge)
“Estúpido Cupido” (Stupid Cupid)
“The Secret”
“Muito Jovem” (Just Young)
“Túnel do Amor” (Tunnel of Love)
“Handsome Boy”
“Who's Sorry Now”
“Broto Já Sabe Chorar”
“Fale-me Com Carinho”
“Querido Cupido”
“Tammy”
“Melodie d'Amour”
“Lacinhos Cor-de-Rosa”
Abertura da novela Estupido Cupido,
TV Globo, 1976
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