“A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado” (Polydor, 1970), Mutantes
Na virada de
1969 para 1970, o Tropicalismo já era coisa do passado. Com Caetano Veloso e
Gilberto Gil “convidados” a se mandarem do Brasil pelo regime ditatorial
militar, indo buscar exílio na Inglaterra, o movimento tropicalista estava
morto e enterrado. No entanto, o movimento havia deixado um valioso legado que
influenciaria tudo que se produziria na música brasileira nas décadas
seguintes.
A banda
Mutantes, um dos principais expoentes do Tropicalismo, procurava a seu modo
seguir caminho próprio após o fim do movimento que abalou a produção cultural do
Brasil no final dos anos 1960. Mesmo findado o movimento tropicalista, o que
não faltou foi trabalho para o trio paulista naquele ano de 1969. A banda
viajou para a França, onde participou do MIDEM (Mercado Internacional de Discos
e Editores), em Cannes, e ainda se apresentou no Teatro Olympia, em Paris, e
num programa de TV. Em julho de 1969, os Mutantes haviam iniciado uma temporada
no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, o espetáculo multimídia Planeta dos Mutantes, que a princípio
tinha o propósito de rodar pelo Brasil, mas devido ao custo do espetáculo,
tornou-se inviável. Ainda naquele ano, participaram do 4º Festival Internacional
da Canção, promovido pela TV Globo, com a canção “Ando Meio Desligado”, que na
classificação final ficou em 10º lugar.
Em outubro
de 1969, os Mutantes deram início às gravações do seu terceiro álbum de
estúdio, A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado, no estúdio Scatena, em
São Paulo, tendo no comando da produção Arnaldo Saccomani.
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Os Mutantes, da esquerda para a direita: Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias. |
A Divina Comédia Ou
Ando Meio Desligado chegou às lojas em março de 1970, trazendo em sua capa uma fotografia
inspirada numa gravura de Gustave Doré (1832-1883) para uma passagem do poema A Divina Comédia, de Dante Alighieri
(1265-1321). A ideia partiu da mente criativa de Cláudio César, irmão mais
velho de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, e também um talentoso construtor de
instrumentos musicais e inventor. No quintal da casa de seus pais, os três
irmãos cavaram uma cova e fizeram uma lápide de isopor. Para a iluminação,
puseram um spot de luz dentro da cova. A fumaça era de uma fogueira que eles
fizeram para realçar um ambiente sombrio. Quem aparece saindo do túmulo falso
com o peito nu é Arnaldo, enquanto Rita e Sérgio, são as duas figuras de pé,
vestidas num manto, que na verdade eram colchas de chenille. Nas cabeças, ambos
usaram tiaras de folhas de louro.
Mas polêmica
mesmo foi a contracapa, em que Arnaldo, Rita e Sérgio aparecem deitados numa
cama tomando café da manhã, acompanhados do baterista Dinho, de pé, vestido de
militar nazista tomando um gole de café numa caneca. A foto foi tirada na cama
dos pais de Arnaldo e Sérgio. Durante a sessão de fotos, a mãe dos dois músicos,
Clarice Baptista, que não sabia de nada, adentrou o quarto e quase desmaiou
quando viu a cena, digamos, “dantesca”, ao menos para ela. Aliás, ”dantesca” é
apropriado já que o termo é relativo a Dante Alighieri, cuja obra principal
inspirou o título do álbum.
A música que
abre o álbum é “Ando Meio Desligado”, a mesma com a qual os Mutantes
participaram do 4º Festival Internacional da Canção, em 1969. Ela começa com
uma percussão executada por ninguém menos que Naná Vasconcelos. Os primeiros
versos parecem se referir sutilmente aos efeitos da maconha: “Ando meio desligado / Eu nem sinto meus pés
no chão”. Os teclados tocados por Arnaldo Baptista e a guitarra de Sérgio
Dias fazem um “duelo” na reta final da música.
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A polêmica foto dos Mutantes na cama que chocou a mãe dos irmãos Arnaldo e Sérgio. |
A faixa
seguinte, “Quem Tem Medo De Brincar De Amor”, trata sobre a descoberta do sexo
na adolescência, numa época em que a virgindade era tabu. “Ave, Lúcifer” é
inspirada numa passagem bíblica, a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e faz
referência ao sexo. No verso “Prometo abrir o meu amor macio...”, a palavra
“abrir” foi censurada, talvez porque os censores acreditaram que fosse uma
associação com vagina. Um ouvinte mais atento vai perceber que no áudio, a
palavra “abrir” foi apagada, criando um curtíssimo vazio sonoro no verso
cantado por Rita Lee.
“Desculpe,
Babe” se tornou outro grande sucesso do álbum e da carreira dos Mutantes, e
conta com Naná Vasconcelos tocando bongô. Em “Meu Refrigerador Não Funciona”,
um blues rock debochado e pesado, com pinceladas psicodélicas, Rita Lee canta
aos berros inspirada em Janis Joplin, enquanto Arnaldo encarna um cantor negro
americano de blues. A base instrumental sensacional serve de sustentação para
Arnaldo cantar desesperado sobre o seu refrigerador que não funciona.
“Hey Boy” é
uma balada bem ao estilo dos primórdios do rock’n’roll nos anos 1950, conta a
vida de um jovem que leva um boa vida sustentado pelo pai rico, usa jaqueta
importada e desfila com seu carro novo na Rua Augusta, famoso ponto de encontro
dos jovens da cidade de São Paulo, entre as décadas de 1950 e 1960. “Preciso
Urgentemente Encontrar Um Amigo”, composta por Roberto Carlos e Erasmo Carlos
especialmente para os Mutantes, traz na letra, clichês bem condizentes à
filosofia hippie como amizade, flor, esperança e paz.
Uma das
músicas mais debochadas e hilárias já gravadas pelos Mutantes foi a regravação
que o trio paulista fez para “Chão De Estrelas”, canção que fez sucesso na voz
de Sílvio Caldas em 1937, e que é um clássico do cancioneiro brasileiro. A
versão dos Mutantes ganhou arranjos fantásticos e muito doidos do maestro
Rogério Duprat (1932-2006), cheio de colagens sonoras como banda marcial, ruído
de avião, relógio cuco, tecido rasgando, e mais outras loucuras. Para
completar, Arnaldo Baptista canta de maneira jocosa, imitando a impostação de
voz do veterano Sílvio Caldas (1908-1998). Quem não gostou da galhofa do jovem
trio paulista foi o apresentador de TV Flávio Cavalcanti (1923-1986), que
furioso, quebrou o disco dos Mutantes diante das câmeras.
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Os Mutantes fizeram uma versão debochada de "Chão de Estrelas", sucesso de Sílvio Caldas (foto), de 1937. A brincadeira despertou a fúria do apresentador de TV Flávio Cavalcanti. |
“Jogo De
Calçada” é um pop psicodélico de versos um tanto quanto surrealistas: “Mas eis que pingo a pingo a chuva chegou /
Na rua de espelho que a água molhou / O menino que correu, cruzou e caiu...”.
“Haleluia” mistura música sacra, rock e humor, mas já dá sinais sutis da
orientação para o rock progressivo que os Mutantes iriam tomar mais adiante. O
álbum termina com “Oh! Mulher Infiel”, faixa instrumental que possui andamentos
diferentes e que alternam som pesado e distorcido com a delicadeza do ritmo
lento do piano.
A Divina Comédia Ou
Ando Meio Desligado inicia um processo de transformação e ao mesmo tempo de transição na
carreira dos Mutantes. Livres das amarras tropicalistas, mas carregando na
bagagem a experiência adquirida com elas, os Mutantes começam a andar com as
próprias pernas, direcionam o seu trabalho para uma sonoridade mais embebida no
psicodelismo, porém adicionando mais peso, graças às linhas de baixo de Liminha
e ao virtuosismo do baterista Dinho. Aliás, diga-se de passagem, Liminha e
Dinho, que antes eram músicos de apoio, após A Divina Comédia Ou Ando Meio
Desligado, foram efetivados na banda, e os Mutantes passaram a ser um
quinteto.
O processo
de transição musical permaneceria nos dois álbuns seguintes, Jardim
Elétrico (1971) e Mutantes E Seus Cometas No País Do Baurets
(1972), que mantiveram a mesma linha estilística de A Divina Comédia Ou Ando Meio
Desligado. Depois disso, com
a saída de Rita Lee em 1972, os Mutantes tomariam de vez o caminho para o rock
progressivo, abrindo mão da irreverência que marcou o grupo, e praticando uma
musicalidade mais séria e burocrática.
Faixas
Lado 1
- "Ando Meio Desligado" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
- "Quem Tem Medo de Brincar de Amor" (Arnaldo Baptista - Rita Lee)
- "Ave, Lúcifer" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Élcio Decário)
- "Desculpe, Babe" (Arnaldo Baptista - Rita Lee)
- "Meu Refrigerador Não Funciona" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
Lado 2
- "Hey Boy" (Arnaldo Baptista - Élcio Decário )
- "Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo" (Erasmo Carlos - Roberto Carlos)
- "Chão de Estrelas" (Orestes Barbosa - Sílvio Caldas)
- "Jogo de Calçada" (Arnaldo Baptista - Ilton Oliveira - Wandler Cunha)
- "Haleluia" (Arnaldo Baptista)
- "Oh! Mulher Infiel" (Arnaldo Baptista)
Mutantes: Arnaldo Baptista (baixo,
teclados e vocais), Rita Lee (vocais, percussões e efeitos) e Sérgio Dias
(guitarras, baixo e vocais)
Revista Bizz –
fevereiro/1987 – Edição 19
Revista Bizz –
novembro/2000 – Edição 184
A Divina Comédia dos Mutantes – Carlos Calado, 1995, Editora 34
Rita Lee: uma autobiografia – Rita Lee, 2016, Editora Globo
Wikipedia
"Ando
Meio Desligado"
"Quem
Tem Medo de Brincar de Amor"
"Ave,
Lúcifer"
"Desculpe,
Babe"
"Meu
Refrigerador Não Funciona"
"Hey
Boy"
"Preciso
Urgentemente Encontrar Um Amigo"
"Chão
de Estrelas"
"Jogo
de Calçada"
"Haleluia"
"Oh!
Mulher Infiel"
"Ando Meio Desligado", com os Mutantes
ao vivo no programa "Som Livre
Exportação", da TV Globo, em 1971.
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