“Alô Malandragem, Maloca O Flagrante” (RCA, 1986), Bezerra da Silva
Por Sidney Falcão
Bezerra da
Silva (1927-2005) foi um dos mais carismáticos e escrachados nomes da história
do samba. Apelidado de “embaixador das favelas”, ganhou fama com sambas
irreverentes que retratavam malandros, caguetes, otários, policiais, cornos,
sogras, adúlteras e políticos safados. Seu prestígio era tão grande que ultrapassavam
as fronteiras do samba, a tal ponto de ser admirado até mesmo por bandas do
rock brasileiro, dentre os quais Barão Vermelho e Planet Hemp.
José Bezerra
da Silva nasceu no Recife, em Pernambuco. Aos 15 anos, foi expulso da Marinha
Mercante, onde trabalhava. Partiu para o Rio de Janeiro para fugir da pobreza
em que vivia na capital pernambucana e também para procurar o seu pai. Chegou a
encontra-lo na então capital do Brasil, mas após desentendimentos com ele,
acabou ficando sozinho. Para sobreviver no Rio de Janeiro, trabalhou na
construção civil como pintor de paredes. No final dos anos 1940, ingressa no
bloco carnavalesco Unidos do Cantagalo tocando tamborim.
Em 1950, um
dos integrantes do Unidos do Cantagalo leva Bezerra da Silva para a Rádio Clube
do Brasil, onde vai atuar como ritmista. Porém, entre o fim da década de 1950 e
início dos anos 1960, Bezerra vive como mendigo pelas ruas de Copacabana. Por
volta de 1965, sua vida muda de rumo quando consegue um emprego trabalhando na
orquestra da gravadora Copacabana, onde acompanha vários artistas em gravações
de discos. Em 1969, surge a sua primeira grande chance na carreira artística:
lança o pela gravadora Copacabana o seu primeiro compacto, embora não tenha
conseguido grande repercussão.
Seis anos
depois, em 1975, Bezerra da Silva lança o seu primeiro álbum, O Rei
do Coco – Volume 1, pela gravadora Tapecar. Daí em diante, o sambista
lança um álbum a cada ano e vai construindo o seu nome no meio do samba,
desenvolvendo o seu estilo e formando o seu público.
Mas a partir
de 1980, quando é contratado pela gravadora RCA, a carreira de Bezerra da Silva
começa a decolar, graças aos seus sambas irreverentes que retratam a dura
realidade dos morros cariocas. Desde aquele momento, Bezerra desenvolvia o hábito
de gravar sambas de compositores pouco conhecidos. Era uma maneira que Bezerra
encontrou de usar o prestígio que estava conquistando para ajudar aqueles
compositores que estavam à margem da indústria musical.
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Bezerra da Silva: sambas irreverentes que retratavam malandros, caguetes, otários, policiais, cornos, sogras, adúlteras e políticos safados. |
O grande
estouro de Bezerra da Silva chega na maturidade, em 1984, aos 57 anos, com
“Defunto Caguete”, um samba hilário do álbum É Esse Aí Que É o Homem,
em que o sujeito mesmo morto, dedurava qualquer um. Nem no inferno e nem no céu
ele perdeu o costume: caguetou o diabo e São Pedro. No ano seguinte, em 1985,
saiu Malandro
Rife, disco que emplacou dos sucessos da carreira de Bezerra, “Bicho
Feroz” e “Vítimas da Sociedade”.
Em 1986,
Bezerra da Silva veio com Alô Malandragem, Maloca O Flagrante,
um álbum com doze sambas irreverentes que seguem a fórmula musical que
consagrou o sambista pernambucano. Temas que se tornaram frequentes nos sambas
gravados por Bezerra como adultério, contrabando, malandragem, drogas e
delação, estão presentes em Alô Malandragem, Maloca O Flagrante.
O álbum
começa com uma música que se tornou um dos maiores sucessos de Bezerra da
Silva, “Malandragem Dá Um Tempo”, um samba em que um usuário de maconha, por
receio de ser delatado por algum caguete, só vai acender o baseado quando os
“dedos de seta” (o mesmo que caguete, delator), sumirem da área. O refrão se
tornou antológico: “Vou apertar / Mas não
vou acender agora / Vou apertar / Mas não vou acender agora / Se segura
malandro / Pra fazer a cabeça tem hora / Se segura malandro / Pra fazer a
cabeça tem hora”.
“Defunto
Grampeado” começa com o soar de uma sirene de viatura da polícia. É a polícia
chegando a um cemitério e manda para o enterro para prender ninguém menos que o
defunto. Na verdade, no caixão não havia defunto, mas um “cabrito importado”,
que na gíria da malandragem é contrabando. O samba termina com o vigário que
fazia a cerimônia do falso sepultamento, e mais alguns malandros
contrabandistas “enjaulados”.
“Quem Usa Antena É Televisão” é um
samba sobre adultério, em que um malandro, ao voltar da boemia, chega em casa e
encontra a sua mulher com outro homem. Embora seja um samba irreverente, “Quem
Usa Antena É Televisão” possui um teor machista nos seus versos, e ainda traz a
violência contra a mulher, que na letra da música, pagou um preço por trair o
marido boêmio: “Lá na minha bocada / A
crioula do Chico
Pedia socorro / Chorava, gemia / O coro comia / A nega apanhava / Que nem
um ladrão / Isso aconteceu / Em uma madrugada / De segunda-feira / O Chico
voltava
Lá da gafieira / E flagrou um esperto / No seu barracão...”.
“Maloca O Flagrante” é outro samba
contrabando. Desta vez, os malandros fazem de tudo para esconder a muamba para
se livrar do flagrante com a chegada da polícia: “Não vai dar pra dividida / Esconde a muamba e sai batido / Quando o
malandro é de verdade / Na briga não gosta de sair ferido”.
Em “Vovô Cantou Pra Subir”, uma
entidade espiritual, neste caso o “vovô”, adverte um pai de santo desonesto
para não cobrar pelas consultas, e lembra que “caridade não se paga”, um dos
princípios da Umbanda. Durante a época difícil que Bezerra da Silva vivenciou
quando morou na rua no Rio de Janeiro, no começo dos anos 1960, o sambista
encontrou apoio na Umbanda, e através dela conseguiu refazer a sua vida.
“A Rasteira do Presidente” foi gravada
durante o recém-implantado Plano Cruzado pelo então presidente do Brasil, José
Sarney, no início de 1986, com o objetivo de combater o alto índice da
inflação. O governo “congelou” os preços, e para fazer com que o plano desse
certo, incentivou o povo a fiscalizar os preços no comércio (lojas,
supermercados, postos de gasolina...). Após poucos meses de algum resultado
positivo, o plano perdeu fôlego e fracassou antes mesmo do ano acabar.
“Meu Bom Juiz” faz uma clara alusão a
José Carlos dos Reis Encina (1956-2004), o Escadinha, traficante de drogas que foi um dos
fundadores da organização criminosa Comando Vermelho, e que em 1985 protagonizou uma fuga
espetacular, ao fugir de helicóptero do presídio da Ilha Grande, no Rio de
Janeiro. Porém, no ano seguinte foi preso novamente. Escadinha comandava o
tráfico de drogas no Morro do Juramento, e como todo líder do tráfico,
comportava-se como um benfeitor da comunidade para ganhar a confiança. É uma
triste realidade que persiste não só nas comunidades pobres do Rio de Janeiro,
mas nas de outras grandes cidades brasileiras. A letra sai em defesa daquele
suposto “defensor” da comunidade como se fosse um herói, um reflexo da pouca ou
nenhuma presença do Estado nas comunidades carentes. Se o poder público não
atende as necessidades dessa população, são os traficantes quem atendem,
cobrando em troca o silêncio e a dignidade dela.
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José Carlos dos Reis Encina, o "Escadinha", um dos fundadores do Comando Vermelho e tema do samba "Meu Bom Juiz". |
“Língua De Tamanduá” é mais um samba
sobre caguete que entrega a malandragem para a polícia, e tem a sua língua
comparada a de um tamanduá. Neste samba, o caguete entregou até quem nada fez
de errado: “Veja bem o que você fez / Seu
língua de tamanduá / Tem gente pagando pelo que não fez / Só porque / Seu dedo
não soube apontar / Agora a malandragem já está sabendo que você cagueta e vai
lhe ripar”.
Em “Na Boca Do Mato”, um malandro
escapou da casa de uma mulher após a chegada do furioso marido dela. Só não
morreu porque sabia jogar capoeira que ele teria aprendido na Bahia.
Se em “Na Boca Do Mato”, o corno era
valente, em “Sua Cabeça Não Passa Na Porta”, o corno é manso e inofensivo: “Seu amigo que é gavião / Está sempre
contente e feliz / Todo dia ele dá um presente à sua criança e você nada diz
E a sua mulher, muito honesta, jura e diz que nem morta / Mas qualquer
dia sua cabeça não passa na porta”.
Para a malandragem, otário e caguete
são a mesma coisa. Em “Os Direitos Do Otário”, o otário só tem dois direitos:
tomar tapa e não dizer nada.
“Compositores De Verdade” encerra o
álbum homenageando os compositores. Assim como Bezerra deu visibilidade a
compositores pouco prestigiados, o sambista sempre foi grato a eles pelo seu
sucesso. Composta sob medida para Bezerra por Romildo, Édson Show e Naval,
“Compositores De Verdade” é um samba de agradecimento. Em seus versos, o samba
traz de maneira interessante citações a outros sambas que fizeram sucesso na
voz de Bezerra da Silva como “Colina Maldita” (“Eu sou do pico, da Colina Maldita”), “Mandei Pro Inferno” (“Já mandei a minha nega pro inferno”),
“Produto Do Morro” (“Sou produto do
morro”), “Pega Eu” (“Gatuno que entra
na casa de pobre”), “Minha Sogra Parece Sapatão” (“Toma tapa da minha sogra sapatão”) e “Bicho Feroz” (“Para bicho feroz tenho a planta maneira”).
Considerado um dos melhores discos da
carreira de Bezerra da Silva, Alô Malandragem, Maloca O Flagrante
teve como as faixas que mais fizeram sucesso “Malandragem Dá Um Tempo”, “Meu
Bom Juíz” e “Sua Cabeça Não Passa Na Porta”. O sucesso em rádio de “Malandragem
Dá Um Tempo”, não livrou Bezerra de ter problemas com as autoridades que o
acusavam de fazer apologia à maconha. Em 1996, a banda Barão Vermelho lançou um
disco intitulado Álbum, em que a banda carioca regravou sucessos de outros
artistas, dentre eles “Malandragem Dá Um Tempo”, porém numa versão mais pop.
Faixas
Lado A
- “Malandragem Dá Um Tempo” (Popular P – Adelzonilton - Moacir Bombeiro)
- “Defunto Grampeado” (Evandro do Galo - Pedro Butina)
- “Quem Usa Antena É Televisão” (Pinga – Celsinho da Barra Funda)
- “Maloca O Flagrante” (Tonho - Cláudio Inspiração - Laureano)
- “Vovô Cantou Pra Subir” (Roxinho - Alicate de Niterói)
- “A Rasteira Do Presidente” (Bicalho - Silvio Modesto)
Lado B
- “Meu Bom Juiz” (Beto s - Braço - Serginho Meriti)
- “Língua De Tamanduá” (Valmir - Tião Miranda)
- “Na Boca Do Mato” (Luiz Grande)
- “Sua Cabeça Não Passa Na Porta” (Barbeirinho do Jacarezinho)
- “Os Direitos Do Otário” (1000tinho - Jorge Garcia)
- “Compositores De Verdade” (Romildo - Édson Show – Naval)
“Malandragem
Dá Um Tempo”
“Defunto
Grampeado”
“Quem
Usa Antena É Televisão”
“Maloca
O Flagrante”
“Vovô
Cantou Pra Subir”
“A
Rasteira Do Presidente”
“Meu
Bom Juiz”
“Língua
De Tamanduá”
“Na
Boca Do Mato”
“Sua
Cabeça Não Passa Na Porta”
“Os
Direitos Do Otário”
“Compositores
De Verdade”
Para muitos o melhor disco do saudoso Bezerra, não é o meu preferido (posto que fica com Malandro Rife, de 1985), mas considero este disco de 1986 como o maior clássico da carreira dele, sem dúvidas.
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