“Tommy” (Decca/Track Records, 1969), The Who
Por Sidney Falcão
A ópera rock surgiu na segunda metade dos anos 1960, quando
cantores e bandas de rock começaram a gravar álbuns que contavam uma
determinada história através de um conjunto de canções. Embora os álbuns The Story
Of Simon Simopath (1967), da banda Nirvana (não confundir com Nirvana do
grunge) e S.F.Sorrow (1968), do The Pretty Things, sejam considerados
pioneiros, foi o álbum duplo Tommy (1969), do The Who, quem
popularizou a ópera rock.
Todo o conceito de Tommy partiu da mente inquieta do
guitarrista do The Who, Pete Townshend. O enredo de Tommy conta a história de
Tommy Walker, cujo pai, o Capitão Walker, foi dado como desaparecido numa
batalha da Primeira Guerra Mundial. Porém, em 1921, o Capitão Walker reaparece,
volta para casa, e encontra a sua espoa com um amante. Walker mata o amante de
sua esposa. O crime é presenciado por Tommy, que tinha então sete anos de
idade, e viu tudo através de um espelho. Ao perceberem que o Tommy assistiu ao
assassinato, os pais do garoto o forçam a não contar nada para ninguém. No
entanto, a cena do crime causou um choque no menino, deixando-o cego, surdo e
mudo. A infância de Tommy foi marcada por vários traumas, de repressão a abuso
sexual e uso de drogas.
The Who em 1969, da esquerda para a direita: Pete Townshend, Roger Daltrey, Keith Moon e John Entwistle. |
Adulto, Tommy torna-se um mestre dos jogos de pinball
(fliperama), e uma legião de milhares fãs cresce entorno dele. Após ser levado
pelos pais a um médico, este encontra a cura para Tommy, e o rapaz livra-se da
mudez, da cegueira e da surdez. Curado, Tommy passa a ter um comportamento estranho:
de astro do pinball, o jovem assume a personalidade de “messias”, um líder de
uma nova seita. No entanto, a mesma legião de fãs que o seguia, revolta-se
contra Tommy e o abandona por negar-se a seguir as suas novas regras. Tommy volta
então a isolar-se do mundo.
O álbum foi gravado no IBC Studios, em Londres, Inglaterra,
entre setembro de 1968 e março de 1969, sob a produção de Kit Lambert
(1935-1981), produtor que já vinha trabalhando com o The Who desde o segundo
álbum da banda, A Quick One, de 1966. Lambert foi um grande incentivador de
Pete Townshend para que o guitarrista abandonasse canções mais simplórias e
procurasse compor material musical mais desafiador, mais instigante. Partiu
desse incentivo o flerte de Townshend com a música erudita, e o fruto disso foi
“A Quick One While He’s Away”, do álbum A Quick One, uma canção de pouco
mais de 9 minutos, divididos em seis parte, e que foi uma espécie de iniciação
do guitarrista na ópera rock, que culminaria mais tarde em Tommy.
A arte da capa do álbum foi concebida pelo artista plástico
inglês Mike McInnerney. Embora Tommy tenha sido lançado
originalmente como álbum duplo, a arte da capa, tanto externa quanto
internamente, foi concebida como um tríptico, dividida em três partes desdobráveis.
Na parte externa da capa, está uma pintura de uma esfera, ilustrada por nuvens
e com buracos em forma de losangos. Ao redor do globo, se vê gaivotas
sobrevoando. Os executivos da gravadora queriam uma foto da banda fosse
incluída na capa. Então foram inseridas pequenas imagens do The Who nos buracos
da esfera.
Lado externo da capa tripla de Tommy. |
Tommy começa com “Overture”, que abre o lado A do disco 1. A faixa
possui baixo, órgão, bateria e guitarra, mas o seu tom épico é garantido pela
orquestra que acompanha a banda. Boa parte da faixa é instrumental, porém, ao
final, tem uma curta letra cantada por Pete Townshend, tendo um solo de violão
ao fundo. Os versos tratam sobre o desaparecimento do Capitão Walker.
Os solos de violão do final de “Overture” fazem um elo de
ligação com a faixa seguinte, a curtíssima “It’s A Boy”, onde uma enfermeira
anuncia, durante o parto da Srª Walker, o nascimento de um menino.
“1921” é uma balada cantada por Townshend, refere-se sobre o
retorno do Capitão Walker, até então dado como desparecido numa batalha durante
a Segunda Guerra Mundial, que ao retornar para casa, flagra a sua esposa com um
amante, que é morto pelo militar. Tommy vê o assassinato através de um espelho.
A letra trata da pressão dos pais sobre Tommy para que ele não conte nada do que
viu.
No entanto, a pressão mostrou-se desnecessária. A cena do
crime causou um choque no menino que acabou ficando cego, surdo e mudo. Em
“Amazing Journey”, na voz Roger Daltrey, a canção traz Tommy aos dez anos de
idade, aprendendo a conviver com sua nova condição e descobrindo novas
sensações.
“Amazing Journey” é sucedida por “Sparks”, faixa
instrumental carregada de muita tensão e na qual se destaca o violão executado
por Pete Townshend. A faixa seguinte, a última do lado A do disco 1, é “Eyesight
To The Blind (The Hawker)”, uma regravação de “Eyesight To The Blind”, de Sonny
Boy Williamson II (1912-1965). Originalmente gravada por Williamson II, em
1951, a versão do The Who ganhou um novo arranjo, uma adaptação na letra, e o
subtítulo “The Hawker”. Enquanto a versão original é um blues, a do The Who é
mais voltada para o rock.
“Christmas” abre o lado B do disco 1 com Roger Daltrey no
vocal principal. Numa manhã de Natal, os pais de Tommy mostram-se preocupados
com o futuro espiritual do filho, que parece ignorar completamente o dia do
nascimento de Jesus Cristo, ao contrário das outras crianças da vizinhança, que
demonstram completa satisfação com o espírito natalino.
Em “Cousin Kevin”, composta pelo baixista do The Who, a
letra da canção fala de Kevin, primo de Tommy. Kevin é perverso e sádico, sua
diversão é fazer os maiores absurdos com o primo cego, surdo e mudo, como
enfiar a cabeça dele numa banheira cheia de água ou queimar a mão de Tommy com
ponta de cigarro aceso. Destaque para Pete Townshend e John Entwistle, que cantam
juntos, e fazem vocais muito bem harmonizados, que criam todo um estado de
tensão e loucura condizente com a letra da canção.
“The Acid Queen” é dedicada a Acid Queen (Rainha Ácida), uma
cigana que é procurada pelos pais de Tommy em busca da cura para o filho. A
cigana dá todas as garantias de que vai curá-lo através de drogas alucinógenas.
Fechando o lado B do disco 1, a faixa instrumental
“Underture”, com seus mais de 10 minutos de duração.
Lado interno da capa tripla de Tommy. |
O lado C do disco 2 de Tommy, começa com “Do You Think
It's Alright?”, faixa curtíssima, pouco mais de 24 segundos. Nesta canção, com
vocais de Roger Daltrey e Pete Townshend, a mãe de Tommy questiona o marido se
foi uma boa ideia deixarem o filho com Tio Ernie. A faixa seguinte, “Fiddle
About”, revela o motivo da dúvida da mãe de Tommy: a letra da música sugere que
Ernie é um molestador que abusa do próprio sobrinho.
“Pinball Wizard”, a principal faixa do álbum duplo e um dos
maiores sucessos da carreira do The Who, conta que no fenomenal jogador de
pinbal que Tommy se transformou, capaz de jogadas incríveis, fora do comum, e
que fazem dele um ídolo para milhares de jovens.
Em “There's A Doctor”, outra faixa curtíssima do álbum, os
pais de Tommy decidem leva-lo a um médico para mais uma busca de cura para o
filho. Na próxima faixa, “Go To The Mirror”, o médico descobre através de
testes que a cura de Tommy depende apenas dele, e pede para os pais para que o
ponha diante de um espelho. Os pais atendem o pedido do médico, e em “Tommy Can
You Hear Me?”, a Srª Walker pergunta ao filho, que está diante do espelho, se
ele pode ouvi-la. Sem ter resposta do filho, num completo desespero e fúria, a
mãe de Tommy quebra o espelho em “Smash The Mirror”.
A quebra do espelho acabou curando Tommy, mas também
transformou a personalidade do jovem. Em “Sensation”, faixa que encerra o lado
C do disco 2, Tommy transforma-se numa figura de postura messiânica, uma espécie
de guru.
Um jornaleiro anuncia a plenos pulmões a cura milagrosa de
Tommy em “Miracle Cure”, abrindo o lado D do disco 2. “Sally Simpson”, uma
canção sobre uma garota fanática por Tommy, o que não deixa de ser uma crítica
ao fanatismo desenfreado dos fãs dedicado aos seus ídolos.
O rock “I’m Free” traz Tommy curado completamente e livre
para prosseguir a sua cruzada messiânica. Daltrey, Townshend e Entwistle cantam
juntos em “Welcome”, onde Tommy assume a sua condição de guru e convoca sua
legião de seguidores para que tragam mais pessoas para o seu “rebanho”.
John Entwistle e Pete Townshend nas sessões de gravação do álbum Tommy. |
A fama de Tommy cresceu, e após a sua cura, ganhou ares de
culto religioso. Com isso, não faltou oportunistas como Tio Ernie para tirar
proveito e lucrar com a fama do ídolo do pinball, e é disso que trata “Tommy's
Holiday Camp”, composta pelo baterista Keith Moon, mas cantada por Pete
Townshend.
“We're Not Gonna Take It” é faixa que encerra o álbum Tommy,
com Roger Daltrey no vocal principal, e Pete Townshend e John Entwistle nos
vocais de apoio. Em “We're Not Gonna Take It”, a legião de seguidores de Tommy
rebela-se contra o seu próprio mestre por discordar das suas regras após a
cura. Dentre as regras estão não beber, não drogar-se, apenas jogar pinball
usando óculos escuros, fone nos ouvidos e uma espécie de rolha na boca,
simulando a antiga condição de cego, surdo e mudo de Tommy. A ideia do guru era
que para seus seguidores alcançarem o seu mesmo nível, teriam que passar pelas
mesmas privações que ele passou. Como o verso que dá nome à música “We're not gonna take it” (“Não vamos aceitar isto”), os fanáticos
se negaram a aceitar as regras e abandonam Tommy, que depois disso volta a
isolar-se do mundo.
Tommy foi lançado nos Estados Unidos em 17 de maio de 1969,
pela Decca Records, e no Reino Unido, quase uma semana depois, no dia 23 de
maio, pela Track Records. Pete Townshend dedicou o álbum ao guru indiano Meher
Baba, falecido em janeiro de 1969, e que exerceu influência tanto na vida
pessoal quanto profissional do guitarrista. A princípio, houve reações
divididas da imprensa musical ao álbum duplo, mas no final, boa parcela dos
críticos acabou reagindo positivamente a Tommy. Quanto à reação do público, o
tema abuso infantil abordado no álbum, chocou a opinião pública na época do
lançamento. Mas isso não impediu que o sucesso comercial de Tommy
acontecesse: o álbum foi 2º lugar no Reino Unido e 4º lugar nos Estados
Unidos, onde vendeu 2 milhões de cópias. Tommy gerou três singles, “Pinball
Wizard” (4º lugar Reino Unido), “I’m Free” e “See Me Feel Me”.
O guru
indiano Meher Baba (1894-1969): influência na vida pessoal e profissional de Pete Townshend. |
Apesar de ter lançado Tommy em maio de 1969, o The Who já
vinha tocando desde abril algumas músicas do álbum em shows ao vivo. Mas a
partir de maio, a banda começou uma turnê de dois meses pela América do Norte,
passando pelos Estados Unidos e Canadá para promover Tommy. Depois, o The Who
prosseguiu a turnê do álbum passando Inglaterra, Escócia, Holanda e França,
tornando-se uma das mais importantes da carreira banda inglesa. Em agosto de
1969, o The Who fez uma apresentação antológica no Festival de Woodstock, nos
Estados Unidos, onde tocou algumas músicas do álbum Tommy. Uma apresentação ao
vivo na Universidade de Leeds, em Leeds, Inglaterra, em fevereiro, deu origem
ao primeiro álbum gravado ao vivo do The Who, o Live At Leeds, e que foi
lançado em maio 1970. Três meses depois, em agosto do mesmo ano, o Who se
apresenta no Festival da Ilha Wight, ilha ao sul da Inglaterra, onde tocaram
boa parte do repertório de Tommy.
Foi nesse período que Pete Towshend começava a trabalhar num
novo projeto do The Who, o Lifehouse, que consistia num álbum duplo
e num filme. Porém o projeto foi abortado e algumas músicas que comporiam o
projeto Lifehouse, acabaram integrando o álbum Who's Next (1971).
Apresentação do The Who no Festival de Woodstock, em agosto de 1969. |
Em 1975, Tommy estreou nas telas cinema. Sob
a direção de Ken Russel, o filme contou a participação do The Who, tendo Roger
Daltrey no papel de Tommy, mais a presença de outros astros como Elton John,
Eric Clapton, Tina Turner, Oliver Reed, Jack Nicholson, Arthur Brown e
Ann-Margret.
Tommy foi fundamental na consolidação da opera rock como estilo
musical. Outras operas rock vieram no seu rastro como Jesus Christ Superstar
(1970), de Andrew Lloyd Weber e Tim Rice e The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The
Spiders From Mars (1972), de David Bowie. É possível perceber
influências de Tommy em outras obras do gênero como Quadrophenia (1973), do
The Who, The Lamb Lies Down On Broadway (1974), do Genesis, e The
Wall (1979), do Pink Floyd, e até mesmo em trabalhos mais recentes como
American
Idiot (2004), do Green Day.
Faixas
Disco 1
Lado A
- “Overture”
- “It’s A Boy”
- “1921”
- “Amazing Journey”
- “Sparks”
- “Eyesight To The Blind (The Hawker)”
Lado B
- “Christmas”
- “Cousin Kevin’
- “The Acid Queen”
- “Underture”
Disco 2
Lado C
- “Do You Think It’s Alright?”
- “Fiddle About”
- “Pinball Wizard”
- “There’s A Doctor”
- “Go To The Mirror!”
- “Tommy, Can You Hear Me?”
- “Smash The Mirror”
- “Sensation”
Lado D
- “Miracle Cure”
- “Sally Simpson”
- “I’m Free”
- “Welcome”
- “Tommy’s Holiday Camp”
- “We’re Not Gonna Take It”
Todas as
faixas compostas por Pete Townshend, exceto as faixas 2 (do Lado B) e 2 (do Lado
C) compostas por John Entwistle, faixa 5 (do Lado D), de Keith Moon e faixa 6 (do
Lado A) composta originalmente por Sonny Boy Williamson II.
The Who:
Roger Daltrey (vocais e gaita), Pete
Townshend (vocais, guitarra, violão, teclados e banjo), John Entwistle (baixo,
trompa e vocais) e Keith Moon (bateria).
"Overture"
"It's A Boy"
"1921"
"Amazing Journey"
"Sparks"
"Eyesight To The blind (The Hawker)"
"Christmas"
"Cousin Kevin"
"The Acid Queen"
"Underture"
"Do You Think It's Alright?"
"Fiddle About"
"Pinball Wizard"
"There's A Doctor"
"Go To Mirror"
"Tommy Can You Hear Me?"
"Smash The Mirror"
"Sensation"
"Miracle Cure"
"Sally Simpson"
"I'm Free"
"Welcome"
"Tommy's Holiday Camp"
"We're Not Gonna Take It"
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