“Voo de Coração” (Epic, 1983), Ritchie
O que
levaria um sujeito sair de tão longe para tentar a carreira de estrela do rock
no país mundialmente conhecido como a terra do samba e do carnaval? E o mais
desafiador, cantar num idioma diferente. Não teria sido mais fácil ter tentado
na sua terra-natal, a Inglaterra, berço dos Beatles, Rolling Stones, Led
Zeppelin, David Bowie e Pink Floyd? Como diria o título de um dos grandes
sucessos da carreira desse estrangeiro aventureiro: “A vida tem dessas coisas”.
E tem mesmo, a vida pode nos reservar grandes surpresas, em lugares e em
situações das mais improváveis.
Richard
David Court, mais conhecido como Ritchie, nasceu em 1952, na cidade de
Beckenham, no Condado de Kent, sul da Inglaterra. Pelo fato do seu pai ter sido
militar, Ritchie morou durante a sua infância e adolescência com a família em
vários países como Quênia, Dinamarca, Itália, Alemanha, Iêmen do Sul e Escócia.
Ou seja, desde muito jovem, ele já tinha a experiência de morar em terras
distantes e conviver com culturas diferentes.
Em 1972, já
morando em Londres, Inglaterra, quando integrava o grupo de folk music Everyone
Involved no qual era flautista, Ritchie conheceu Rita Lee e Liminha, ambos
ainda membros dos Mutantes e que estavam a passeio na capital inglesa. Rita
sugeriu a Ritchie que tentasse a carreira musical no Brasil. No final daquele
ano, o jovem inglês já estava embarcando rumo ao Brasil, se estabelecendo
primeiro em São Paulo, onde fez parte da banda de rock progressivo Scaladácia,
em 1973. A banda durou pouco, e no fim de 1973, já casado com a arquiteta
brasileira Ledo Zuccarelli, mudou-se para o Rio de Janeiro. Na nova morada
brasileira, para sobreviver, Ritchie trabalhou como professor de inglês numa
escola de idiomas, mas também dava aulas particulares, principalmente para
artistas famosos da música brasileira como Gal Costa, Egberto Gismonti, Paulo
Moura entre outros.
Da esquerda para a direita: Ritchie, Rita Lee, Sandra Werneck, Lúcia Turnbull, Inglaterra, em 1972. |
No Rio de Janeiro, entre 1975 e 1978, Ritchie passou pelas bandas A Barca do Sol e Vímana, sempre como flautista. Além de Ritchie nos vocais e na flauta, a banda Vímana contava com Lulu Santos (guitarra), Fernando Gama (baixo), Luiz Simas (teclados) e Lobão (bateria). Curiosamente, Lulu Santos, Lobão e Ritchie se tornariam estrelas do rock brasileiro na década seguinte. Em 1977, a banda chegou a lançar um compacto, e em 1978, serviria de banda de apoio ao ex-tecladista do Yes, Patrick Moraz, que estava morando no Brasil naquele momento. Desentendimentos entre Moraz e Lulu acabaram pondo fim à banda Vimana.
Em 1980, Ritchie
aceita o convite do cantor Jim Capaldi, ex-baterista do Traffic para retornar a
Londres para trabalhar como backing vocal no disco que iria gravar, Let The Thunder Cry, que seria lançado no ano seguinte. Durante a gravação, Ritchie teve contatos com Steve Winwood
(ex-Traffic), Simon Kirke (do Bad Company), Mell Collins (do King Krimson)
entre outros músicos de alto gabarito do rock inglês.
Vímana, da direita para a esquerda: Luiz Simas, Lobão, Lulu Santos, Ritchie e Fernando Gama. |
Porém, o
produtor Fernando Adur ouviu a fita, e levou uma cópia para a CBS, onde tinha
contatos. Era a única gravadora que Ritchie não havia enviado suas fitas demos
anteriormente. O diretor da gravadora, Cláudio Condé, ouviu a tal fita e chamou
Ritchie. Após uma audição no escritório do diretor, Ritchie assinou contrato
com a gravadora.
A princípio,
seria lançado um compacto com a música “Voo de Coração”, mas Condé sugeriu que
Ritchie regravasse a canção num estúdio de 24 canais. No entanto, regravar essa
canção seria abrir mão da versão demo que contava com a participação luxuosa do
guitarrista Steve Hackett, na época, casado com a artista plástica brasileira
Kim Poor. Provavelmente, quando foi proposta a ideia de regravar “Voo de
Coração”, Hackett deve ter retornado para a Inglaterra, onde não só ele tinha a
sua carreira, mas também a sua esposa. Ao invés de regravá-la, Ritchie regravou a
canção que as gravadoras haviam recusado: “Menina Veneno”. O diretor ouviu e se
encantou.
Capa do single (compacto) de "Menina Veneno". |
Em fevereiro
de 1983, o compacto de “Menina Veneno” foi lançado pela Epic, selo da gravadora
CBS, trazendo no lado B a faixa “Baby, Meu Bem”. O compacto logo tornou-se um
grande sucesso nacional. “Menina Veneno” teve execução maciça nas emissoras de
rádio de todo o Brasil, e Ritchie passou a ser presença frequente nos programas
de TV com seu visual new wave futurista. O compacto de “Menina Veneno” vendeu mais
de 800 mil cópias, elevando Ritchie ao posto de astro do rock brasileiro. A
excelente vendagem do compacto deixou o diretor da gravadora tão motivado que
tentou convencer os outros executivos da companhia de que Ritchie já poderia
gravar um álbum. No entanto, os executivos mostravam-se cautelosos.
Com o
compacto de “Menina Veneno” ainda vendendo bastante e tendo recordes de
execução radiofônica, chegava às lojas em junho de 1983 o primeiro álbum solo
de Ritchie, Voo de Coração, justamente o título da canção que o cantor
inglês insistiu que se mantivesse na versão gravada em 8 canais com as
guitarras de Steve Hackett.
Trazendo 10
faixas - oito delas da parceria Ritchie/Bernardo Vilhena - Voo de Coração é um álbum
de rock com forte acentuação pop. Voo de Coração carrega em suas
faixas, influências de David Bowie, Roxy Music e do synthpop inglês da época.
Apesar da presença da guitarra, do baixo e da bateria, são os sintetizadores
quem dominam as bases instrumentais de boa parte do álbum, sob o comando do
tecladista Lauro Salazar que deu um toque futurista a algumas faixas, deixando
a sonoridade datada com o passar do tempo, porém conservando alguma elegância
pop. Os temas das canções giram em torno de romance, sedução e tecnologia
(interfone, computador, holograma...), que somados a uma sonoridade bem polida,
tornaram o álbum bastante acessível para o grande público.
Lauro Salazar (à esquerda) e Ritchie, em foto de 2009: o tecladista foi responsável pela sonoridade synthpop do álbum Voo de Coração. |
A presença
maciça dos sintetizadores em Voo de Coração já se revela logo na
primeira faixa, “No Olhar”, sustentada por camadas de teclados. No entanto, um
solo de guitarra executado por Lulu Santos surge “rasgando” no final da música.
“A Vida Tem Dessas Coisas” é uma balada pop que começa com um piano e a voz de
Ritchie. Na letra da canção, após tantas tentativas para encontrar a garota que
procura, Ritchie se vê preso num elevador com ela, onde passarão por toda uma
madrugada juntos, uma cena típica de telenovela.
“Voo de
Coração”, faixa que dá nome ao álbum, é uma canção romântica com teor futurista.
O cantor vê o rosto de uma mulher num holograma num canto da sala de seu
apartamento. Numa época em que computadores não faziam parte do cotidiano
doméstico das pessoas, a letra da canção descreve o cantor solitariamente
escrevendo suas memórias. O grande destaque em “Voo de Coração” são os
maravilhosos solos de guitarra que Steve Hackett faz em toda a canção, o que
explica insistência de Ritchie em não querer regravar a canção. A versão que se
ouve no álbum é a mesma da fita demo. No final da canção, camadas sobrepostas de solos de guitarra de Hackett formam um belo pano de fundo
A futurista
“Casanova” é a faixa do álbum mais dominada por sintetizadores. O tecladista
Lauro Salazar criou os arranjos que deram um caráter elegante e refinado à
música.
O Homem E Seus Símbolos, de Carl Gustav Jung: inspiração para "Menina Veneno". |
“Menina
Veneno”, inicialmente lançada como single, foi incluída no álbum. É uma canção
pop por excelência: base instrumental simples, agradável e refrão “grudento”,
daqueles para não sair da cabeça do ouvinte. A canção foi composta por Ritchie
e Bernardo Vilhena após lerem "O Homem E Seus Símbolos” (1964), livro póstumo de Carl Gustav
Jung (1875-1961), que trata sobre a linguagem dos sonhos dentro do ponto de vista da
psicanálise. Em “Menina Veneno”, sedução e mistério rondam a letra da canção
numa descrição quase cinematográfica: “Meia
noite no meu quarto / Ela vai subir / Ouço passos na escada / Vejo a porta abrir
/ Um abajur cor de carne / Um lençol azul / Cortinas de seda / O seu corpo nu”.
No formato
LP, “Preço do Prazer” é a faixa que abre o lado B, e fala sobre o alto preço
que se paga ao ficar longe de quem se ama por causa da vida de rock star. “Pelo
Telefone”, um bolero eletrônico feito por sintetizadores e bateria eletrônica, antecipa
em 25 anos o que seria o arrocha, porém com muito mais elegância e
sofisticação. Os solos de saxofone de Zé Luiz dão um toque diferenciado ao som
robótico da base instrumental de “Pelo Telefone”. “A Carta” é a única faixa não autoral presente no álbum;
trata-se de uma versão em português de “The Letter”, hit de 1967 da banda pop
norte-americana The Box Tops. “Parabéns Pra Você” celebra a vida e mostra que a
felicidade pode ser vivenciada com simplicidade e sem ostentações.
Encerrando o
álbum, “Tudo Que Eu Quero (Tranquilo)”, mais uma faixa romântica de Voo
de Coração. É a faixa com os arranjos mais elaborados do álbum. A
calmaria e suavidade melódicas da canção permitem uma melhor percepção da voz
de Ritchie e da sua performance como cantor.
O álbum Voo
de Coração superou todas as expectativas tanto da gravadora quanto de
Ritchie. Além de “Menina Veneno”, as faixas “A Vida Tem Dessas Coisas”,
“Casanova”, “Pelo Telefone” e “Voo de Coração” escalaram as aparadas de sucesso
em todo o Brasil, estando em entre as mais executadas. A presença de Ritchie
nos programas de TV aumentou consideravelmente. Ritchie não escapou nem das
telenovelas: “Menina Veneno” entrou na trilha sonora da novela Pão Pão, Beijo Beijo, enquanto que
“Casanova” foi tema de abertura da telenovela Champagne, ambas as telenovelas da TV Globo produzidas em 1983.
Steve Hackett, ex-guitarrista do Genesis e que fez solos maravilhosos na faixa "Voo de Coração". |
Voo de Coração tornou-se um fenômeno em vendas
chegando à marca de 1,2 milhão de cópias. No ano de 1983, Ritchie foi o cantor
que mais vendeu discos no Brasil, superando até mesmo Roberto Carlos, o cantor
mais popular do país e acostumado a vender 1 milhão de discos de cada álbum que
lançava. Com Voo de Coração, Ritchie atingiu um nível de popularidade que
alcançou todas as camadas sociais, desde os jovens da classe A às empregadas
domésticas. O sucesso fantástico de Voo de Coração fez Ritchie sair numa
grande turnê nacional que passou por 140 cidades, além de ter passado também
por alguns países da América Latina, o que fez a gravadora lançar uma versão em
espanhol de “Menina Veneno”, que virou ”Mi Ninã Veneno”. A popularidade de
Ritchie era tão grande que em 1984, Ritchie conquistou o Troféu Imprensa na
categoria “Melhor Cantor”, desbancando os veteranos Roberto Carlos e Tim Maia.
O megassucesso de Ritchie, no entanto, parecia gerar uma “ciumeira” em alguns setores da MPB, principalmente entre os sambistas. A cantora Alcione chegou a desdenhar do talento de Ritchie pelo fato de ser um inglês fazendo sucesso no Brasil cantando rock em português. Ritchie por sua vez retrucou desafiando-a a ir para a Inglaterra gravar um disco de samba cantando em inglês e vender um milhão de cópias.
Detalhe da contra-capa do álbum Voo de Coração. |
O megassucesso de Ritchie, no entanto, parecia gerar uma “ciumeira” em alguns setores da MPB, principalmente entre os sambistas. A cantora Alcione chegou a desdenhar do talento de Ritchie pelo fato de ser um inglês fazendo sucesso no Brasil cantando rock em português. Ritchie por sua vez retrucou desafiando-a a ir para a Inglaterra gravar um disco de samba cantando em inglês e vender um milhão de cópias.
Ritchie teve
ainda um atrito com Leleco Barbosa, filho de Chacrinha e diretor do programa Cassino do Chacrinha, na TV Globo. O
inglês discordava do esquema predatório de Leleco, onde o cantor ou banda que
quisesse se apresentar no Cassino do
Chacrinha, tinha que participar junto outros artistas de uma caravana de
Leleco que percorria a periferia do Rio de Janeiro fazendo shows na base do
playback em clubes e casas de espetáculo lotados, sem estrutura adequada, e em
alguns casos, se apresentando de graça. Esse rompimento com Leleco teria selado
a sorte de Ritchie que passou a não ser mais chamado para se apresentar no Cassino do Chacrinha.
Leleco Barbosa, filho do apresentador Chacrinha e desafeto de Ritchie. |
No rastro do
êxito comercial de Voo de Coração, sai em outubro de 1984 o segundo álbum de
Ritchie,... E A Vida Continua. O álbum vende 200 mil cópias, um número
razoável, mas não em se tratando de Ritchie que havia chegado à marca
milionária em vendagens logo no seu primeiro álbum. Existem especulações de que
a CBS teria sabotado ... E A Vida Continua ao ter feito
pouca divulgação do álbum propositalmente
por pressão de Roberto Carlos. Os dois cantores eram da mesma gravadora
Ritchie
ainda lançaria mais um álbum pela CBS, Circular, em 1985, um fracasso em
vendas. O astro rescinde contrato com a gravadora, que pouco fez esforço para
mantê-lo na companhia. É contratado pela PolyGram, mas nunca mais repetiria o
êxito fenomenal de Voo de Coração.
Faixas
Lado A
- "No Olhar")
- "A Vida Tem Dessas Coisas"
- "Voo de Coração"
- "Casanova"
- "Menina Veneno"
Lado B
Todas as faixas são de autoria de
Ritchie - Bernardo Vilhena, exceto as indicadas.
Ouça na íntegra o álbum Voo de Coração
"Menina Veneno" (videoclipe original, 1983)
Vídeo clipe de "A Vida Tem Dessas Coisas",
programa Fantástico, TV Globo, 1983
Vídeo clipe de "Voo de Coração",
programa Fantástico, TV Globo, 1983
"Casanova" como tema de abertura da
telenovela Champagne, TV Globo, 1983.
Apresentação de Ritchie no
"Programa Raul Gil" no SBT, 1983.
telenovela Champagne, TV Globo, 1983.
"Programa Raul Gil" no SBT, 1983.
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