“Claridade” (Odeon, 1975), Clara Nunes
Até se
consagrar como um dos maiores nomes do samba de todos os tempos, Clara Nunes passou
por vários caminhos, alguns um tanto quanto distantes do gênero que lhes deu
fama. Nascida em Paraopeba, Minas Gerais, em 1942, Clara Francisca Gonçalves
Pinheiro - o nome de batismo de Clara Nunes - trabalhou como tecelã em Belo Horizonte
aos 18 anos. Na mesma cidade, começou a carreira cantando no rádio. Em 1965,
mudou-se para o Rio de Janeiro onde foi tentar uma sorte maior na carreira
artística. Apresentou-se em casas noturnas, programas de rádio e TV cantando
boleros, e até participou de festivais de música. No mesmo ano, fez um teste na
gravadora Odeon, foi aprovada e logo contratada.
Entre 1966 e
1970, Clara lançou três álbuns com um repertório essencialmente romântico,
baseado em boleros e sambas-canções. Os três álbuns foram um tremendo fracasso
em vendas.
Clara Nunes na capa do seu primeiro álbum, em 1966: visual comportado e romântico. |
A carreira
de Clara Nunes só tomaria um novo rumo após uma apresentação em Luanda, Angola,
em 1970. Por sugestão do produtor musical Adelzon Alves, Clara Nunes adotou a
estética visual e a linguagem musical baseadas na cultura afro-brasileira. Desde
Carmen Miranda, a música brasileira não via surgir uma cantora com uma estética
inspirada na cultura afro-brasileira, e Adelzon enxergava nisso uma
possibilidade de dar uma alavancada na carreira de Clara. A cantora, que havia
sido espírita, tinha como religião o Candomblé, mas havia trocado pela Umbanda,
e tais experiências nos cultos afro-brasileiros só ajudaram a dar mais
veracidade à sua nova orientação artística. Quanto à gravadora, esta mostrou-se
resistente à mudança, preferia algo dentro da linha romântica, mas cedeu ante a
insistência de Clara Nunes.
Em 1971,
veio o primeiro grande sucesso na nova fase, “Ê Baiana”, faixa do seu quarto
álbum que leva o nome da cantora. A partir daí, Clara começa a firma-se como
uma promissora cantora de samba carismática, um apelo visual marcante, uma voz
forte, bonita e afinada. Depois de muitos anos, o samba começava a recuperar a
partir do começo da década de 1970, o seu potencial comercial. O gênero musical
voltava a ser mais executado em rádio e a vender mais discos graças a uma nova
geração de sambistas, que além de Clara, faziam parte também Martinho da Vila,
Beth Carvalho, Paulinho da Viola, João Nogueira, Elton Medeiros, Benito di
Paula entre outros.
Com o álbum Alvorecer,
de 1974, Clara firma-se não só como uma grande intérprete, mas também como uma
grande vendedora de discos. Puxado pelos sucessos “Conto de Areia” e “Meu
Sapato Já Furou”, o álbum vende mais de 400 mil cópias e acaba com uma teoria
preconceituosa no Brasil de que mulheres não vendem muitos discos.
No ano
seguinte, chega às lojas Claridade, álbum com o qual Clara
mostra que o êxito comercial de Alvorecer não foi um mero acaso. Em Claridade,
Clara apresentou uma boa mescla de gerações de compositores de samba, desde
novos talentos como Ivor Lancellotti, Paulo César Pinheiro e Alberto Conato, a
veteranos como Cartola, Nélson Cavaquinho e Ismael Silva. O álbum trazia também
compositores ligados à Portela, a escola de samba de Clara, como Monarco e
Candeia.
Clara Nunes em detalhe da capa do álbum Alvorecer. |
A música que
abre o álbum é “O Mar Serenou”, de Candeia, um samba que guarda referências da
Iara, uma sereia que faz parte da mitologia brasileira que com seu canto
envolvente, é capaz de encantar os homens e levá-los para o fundo mar (“O pescador não tem medo / É segredo se
volta ou se fica no fundo do mar”). O ritmo alegre e festivo do samba
“Sofrimento de Quem Ama” contrasta com a letra triste sobre a dor de amar
alguém. Em “A Deusa dos Orixás”, samba sobre Iansã, Ogum, Nanã e Xangô, orixás
do Candomblé, Clara ratifica a sua intenção em apresentar para as grandes
massas a cultura afro-brasileira, quebrando preconceitos religiosos, culturais
e raciais. “Juízo Final”, samba de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, ganha com
Clara Nunes talvez a sua melhor versão numa interpretação impecável da cantora
mineira. O samba “Tudo É Ilusão” – já gravado anteriormente por Dalva de
Oliveira - mostra que o final de um relacionamento sem gerar mágoas ou traumas
é possível. Com um arranjo que faz lembrar as antigas serenatas, “Valsa do
Realejo” parece destoar de todo o álbum mais voltado ao samba.
Canto e gestos: Clara Nunes costumava cantar usando u gestual inspirado nas danças afro-brasileiras. |
“Bafo
de Boca” é um samba bem humorado sobre um compadre que adora a vida nos bares, bebida
e mulheres, mas dá pouca atenção à esposa. “O Último Bloco” diz que a
felicidade pode estar dentro de nós mesmos, enquanto que o samba com ares
nostálgicos “Ninguém Tem Que Achar Ruim” fala sobre boemia. Com um arranjo
cheio de violinos e uma cuíca chorosa, a melancólica “Às Vezes Faz Bem Chorar”
é um samba-canção que lembra a Clara Nunes do início da carreira do repertório
essencialmente romântico. “Vai, Amor” é mais uma canção presente no álbum sobre
fim de um relacionamento cheio de mágoa. “Que Seja Bem Feliz”,
de Cartola, é uma canção em que Clara canta acompanhada de um violão num canto
melancólico sobre despedida, mas que ao contrário da canção anterior, é
desprovida de ressentimentos, o amor acabou, mas ficou a saudade: “Que seja bem
feliz / E leve-me na mente / Que cresçam sua glórias / E as minhas lágrimas
contentes”.
No mesmo ano
em que Claridade foi lançado, Clara Nunes casou-se com Paulo César
Pinheiro, um dos compositores que ela gravou no álbum. A partir de então, talvez por influência do marido, Clara amplia
o seu arco musical, indo além dos referenciais afros, mas sem abrir mão da
estética afro-brasileira. Nos álbuns subsequentes, ela acrescentaria ao seu
repertório o forró, baião e até frevo, sem comprometer a sua obra, muito pelo
contrário. Clara se revelou uma boa intérprete de forrós.
Clara Nunes e o marido, o compositor Paulo César Pinheiro. |
Na sequência
de Claridade,
vieram Canto das Três Raças (1976), As Forças da Natureza (1977),
Guerreira
(1978), Esperança (1979), Brasil Mestiço (1980), Clara
(1981) e Nação (1982), todos com marcas expressivas em vendas fazendo
Clara figurar na lista dos artistas campeões em vendagens de discos no Brasil. O
sucesso e a grande exposição de Clara alimentou uma rivalidade entre ela e Beth
Carvalho, que desfrutava de grande popularidade na década de 1970 e disputava
com Clara Nunes o posto de “Rainha do Samba”.
Clara Nunes com o seu visual icônico consagrador. |
Se por um
lado a imagem de baiana estilizada de Carmen Miranda serviu como ponto de
partida para Clara Nunes adotar a estética afro-brasileira e mergulhar no caldo
da herança cultural africana no Brasil para desenvolver o seu trabalho como
artista, por outro, Clara acabou abrindo um importante caminho para que futuras
gerações de cantoras também trilhassem o caminho da musicalidade afro-brasileira.
Não seria exagero afirmar que cantoras como Daniela Mercury, Margareth Menezes,
Rita Ribeiro e Mariene de Castro trilharam o caminho aberto por Clara Nunes.
Faixas:
Lado A
01. O Mar Serenou (Candeia)
02. Sofrimento De Quem Ama (Alberto
Lonato)
03. A Deusa Dos Orixás (Romildo Bastos - Toninho Nascimento)
04. Juízo Final (Nelson Cavaquinho-
Élcio Soares)
05. Tudo É Ilusão (Aníbal Da Silva - Eden
Silva - Tufic Lauar)
06. Valsa De Realejo (Guinga - Paulo
César Pinheiro)
Lado B
01. Bafo De Boca (João Nogueira - Paulo
César Pinheiro)
02. O Último Bloco (Candeia)
03. Ninguém Tem Que Achar Ruim
(Ismael Silva)
04. Às Vezes Faz Bem Chorar (Ivor
Lancellotti)
05. Vai Amor (Monarco - W. Rosa)
06. Que Sejas Bem Feliz (Cartola)
Vídeo-clipe de "O Mar Serenou",
programa Fantástico, TV Globo, 1975.
Vídeo-clipe de "A Deusa dos Orixás",
programa Fantástico, TV Globo, 1975.
Áudio "Juízo Funal".
Muito bom o texto.
ResponderExcluirObrigado Ademar. Valeu!!
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