“Gal Costa” (Philips, 1969), Gal Costa


Gal Costa havia deixado Salvador por volta de 1965 e partiu para o Rio de Janeiro para tentar um lugar ao sol na carreira artística, seguindo os passos dos seus ex-companheiros de Teatro Vila Velha na capital baiana, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Tom Zé. Com eles, Gal participou de espetáculos como Nós Por Exemplo... e Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova. Era um grupo extremamente influenciado pela bossa-nova, em nada lembrando a postura revolucionária que iria adotar com o Tropicalismo dali a pouco tempo.

Após lançar um compacto em 1967, Gal Costa gravou o primeiro álbum da carreira, Domingo, na verdade um álbum que ela dividiu com Caetano Veloso.  Domingo é um álbum intimista e todo fundamentado na bossa-nova em que Gal e Caetano retomam o que faziam com os antigos companheiros da época do Teatro Vila Velha, em Salvador.

Domingo, primeiro álbum completo da carreira de
Gal Costa e Caetano Veloso.
Em 1968, o mundo mais parecia uma bomba-relógio pronta para explodir. Naquele ano, as ruas das grandes cidades do planeta estavam sob estado de tensão. Na capital da então Tchecoslováquia, Praga, acontecia a “Primavera de Praga” que pedia por mais democracia e liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, o líder da luta pelos direitos civis dos negros, Martin Luther King, era assassinado em abril. Na França, estoura o movimento “Maio de 68” que começou com os estudantes da Universidade de Paris e culminou numa greve geral dos trabalhadores franceses.

Aqui no Brasil, o regime ditatorial dos militares, no poder desde 1964, se torna cada vez mais implacável. Estudantes, artistas e intelectuais vão às ruas na “Passeata dos 100 Mil”, no Rio de Janeiro, protestando contra a ditadura e o assassinato do estudante Edson Luís, morto por policiais militares num restaurante. O presidente Costa e Silva proíbe qualquer tipo de manifestação. O Tropicalismo, movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, chega ao seu ápice pregando uma renovação na cultura brasileira e o enfrentamento ao regime ditatorial. 

É nesse cenário conturbado e tenso de 1968 que Gal Costa, já integrada ao movimento tropicalista, passa por uma radical transformação estética e musical. A cantora tímida e intimista do álbum Domingo, de 1967, o qual ela dividiu com Caetano Veloso, agora era coisa do passado. Gal adotou um visual psicodélico e uma postura mais roqueira, cantando de maneira mais agressiva, uma clara influência de Janis Joplin, diferenciando-se da rebeldia inofensiva e comportada das cantoras da Jovem Guarda. A ideia para tal transformação partiu do seu empresário, Guilherme Araújo, o mesmo de Caetano e Gil, que, diga-se de passagem, também incentivaram a mudança da amiga.

Janis Joplin: inspiração para uma nova Gal Costa.

Gal participa das gravações do álbum-manifesto Tropicália Ou Panis Et Circencis, em maio de 1968, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Mutantes e Nara Leão. Fez os vocais de apoio em algumas faixas, e o vocal principal em “Mamãe Coragem” (de Caetano Veloso e Torquato Neto) e “Baby” (de Caetano Veloso). O álbum chega às lojas em julho, e a faixa “Baby” torna-se um grande sucesso nas rádios, o primeiro da carreira de Gal.

Em novembro do mesmo ano, Gal Costa defende a canção “Divino Maravilhoso”, de Caetano Veloso, no IV Festival da TV Record, se apresentando com um figurino hippie, cabelos cacheados em estilo black power e fazendo uma performance arrebatadora, cantando aos gritos e dando ênfase aos agudos. Na finalíssima do festival, no início de dezembro, Gal conquista o terceiro lugar. O nome da música batizou um programa na TV Tupi comandado por Gil, Caetano, Gal, Mutantes e Tom Zé, que estreou um mês antes do festival.

Gal Costa: visual novo e canto mais rebelde.

Ao mesmo tempo em que participava do festival, Gal estava em processo de gravação do seu primeiro álbum solo, sob produção de Manoel Barenbein, nos estúdios Scatena e Reunidos, em São Paulo. Os arranjos do álbum ficaram a cargo do maestro tropicalista Rogério Duprat. Em algumas canções, os arranjos ficaram por conta de Gilberto Gil e do guitarrista Lanny Gordin.

Durante o período de gravação do álbum, o presidente Costa e Silva sancionava no dia 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional Nº 5, o famigerado AI-5, tornando o regime ditatorial mais implacável com quem cruzasse o seu caminho. O ato dava mais poderes ao governo como o direito de dissolver o Congresso, perda de mandato aos parlamentares contrários ao governo, intervenções em estados e municípios, censura prévia de música, filmes, peças teatrais, programas de TV, jornais impressos e suspensão de habeas corpus.

A principal consequência do AI-5 contra o movimento tropicalista foi a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil no dia 27 de dezembro. O regime militar ditatorial quebrou as “duas pernas” do Tropicalismo. Com a prisão dos dois, o lançamento do álbum de Gal, previsto para fins de 1968, teve que ser adiado para começo do ano seguinte.

AI-5 reprimiu a liberdade de expressão no Brasil. Era o começo do fim do sonho tropicalista. 

Gal Costa, o álbum, apresenta uma Gal mais diversificada e bem distante da cantora tímida e introspectiva do álbum Domingo. Apesar de trazer referências de bossa-nova – primeira grande influência de Gal – o álbum registra musicalmente as transformações pelas quais a cantora passou não apenas esteticamente. O álbum traz composições desde amigos tropicalistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé até a dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos, ídolos da Jovem Guarda, que tinham bom relacionamento com os membros do Tropicalismo.

Na primeira faixa do álbum, “Não Identificado”, de Caetano Veloso, já são perceptíveis as mudanças pelas quais passou Gal. A canção é uma bossa-pop que começa com sons estranhos, cheios de ecos, e que simulam algo como uma viagem no espaço sideral, um reflexo da corrida espacial travada na época entre Estados Unidos e a então União Soviética, e claro, por influência do filme futurista de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisséia No Espaço, que havia estreado nos cinemas naquele em 1968. “Não Identificado” foi regravada pelo próprio Caetano Veloso em seu segundo álbum, o da capa branca, lançado em 1969.

A faixa seguinte é uma releitura tropicalista de “Sebastiana”, sucesso de Jackson do Pandeiro, de 1955. A versão de Gal é um xaxado com contornos psicodélicos, e que conta com participação especial de Gilberto Gil, alternando com Gal, vocalizações cheias de ecos no final da música. Artistas como Jackson haviam caído no ostracismo com o advento da bossa-nova e da Jovem Guarda, tornaram-se cafonas, bregas. O Tropicalismo acabou desempenhando um papel especial de resgatar do “limbo” esses artistas ao lançar um novo olhar sobre as suas obras, tidas como “fora de moda”.

Jackson do Pandeiro: xaxado com contornos psicodélicos de Gal Costa.

“Lost In The Paradise”, composta totalmente em inglês por Caetano Veloso, traz uma Gal Costa num canto doce e suave, amparada por elegantes arranjos de cordas e metais criados por Rogério Duprat. “Namorinho de Portão”, de Tom Zé, retrata de maneira bem humorada, como era o namoro bem comportado de antigamente. A música foi regravada pela banda Penélope, em 1999, chegando a fazer um razoável sucesso.

 A bossa-nova “Saudosismo”, outra canção composta por Caetano, é a única presente no álbum que faz lembrar a Gal Costa tímida de Domingo. A canção traz nos seus versos citações de alguns clássicos da bossa-nova como “Lobo Bobo”, “Desafinado” e “Chega de Saudade”. Encerrando o lado A, “Se Você Pensa”, regravação do hit da dupla Roberto e Erasmo. A versão de Gal mantém a essência de soul music da gravação original de Roberto Carlos, porém acrescida de guitarra com efeitos wah-wah de Lanny Gordin e um baixo bem marcado.

O lado B do álbum começa com outra música de Roberto e Erasmo, “Vou Recomeçar”, composta exclusivamente para Gal, e que dá prosseguimento ao clima soul da última faixa do lado A. “Vou Recomeçar” tem uma levada rítmica dançante, garantida pela percussão, bateria e uma guitarra funk fazendo a base, e outra guitarra bluesy de Lanny fazendo os solos, dando um toque especial à música.

Gal Costa e Roberto Carlos.

Defendida por Gal no IV Festival da TV Record, e composta por Caetano Veloso, “Divino Maravilhoso” foi incluída no álbum. A música é um rock que reflete o momento de opressão política em que o Brasil vivia. O refrão é uma convocação e ao mesmo tempo um alerta: “É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”. Era uma demonstração de enfrentamento ao sistema opressivo do governo ditatorial.

Na alegre e romântica “Que Pena (Ele Já Não Gosta Mais De Mim)”, de Jorge Ben, Gal faz dueto com Caetano Veloso. O próprio Jorge, autor da música, faz participação especial com o seu inconfundível violão.

Caetano Veloso e Gal Costa: amizade antes, durante e
depois do Tropicalismo
“Baby”, gravada originalmente para o disco-manifesto Tropicália Ou Panis Et Circencis, foi incluída no álbum de Gal. A música já era conhecida do grande público, o que só ajudou a impulsionar as vendas do álbum da cantora baiana. Ela teria sido composta por Caetano para sua irmã, Maria Bethânia, gravar para o álbum tropicalista. Mas Bethânia teria se recusado porque não queria se prender ao movimento. Acabou caindo no colo de Gal como um presente. “Baby” carrega elementos de bossa-nova, mas é ao mesmo tempo uma canção pop. Na reta final da música, Caetano faz uma participação especial cantando o refrão de “Diana”, de Paul Anka, fazendo um contraponto a Gal que canta o refrão de “Baby”.

Após “Baby”, seguem a ingênua e doce “A Coisa Mais Linda Que Existe”, de Gilberto Gil e Torquato Neto, e a espiritualista “Deus É O Amor”, de Jorge Ben que fecha o álbum. Com um ritmo gostoso e alegre, “Deus É O Amor” tem versos emblemáticos: “Mas eu tenho fé / Que a chuva há de passar / E aquele sol tão puro / De manhãzinha bem quentinho há de chegar / E os passarinhos vão cantar / Pois a alegria vai voltar / E todo mundo que foi embora vai voltar...”. Seria uma mensagem cifrada, uma “premonição” de Jorge Ben ao futuro da ditadura militar no Brasil e a todos que foram presos e exilados no exterior durante a sua presença no poder?

Lançado em março de 1969, Gal Costa, o álbum, foi bem recebido pela crítica e pelo público, atingindo a marca de 100 mil cópias vendidas. Gal Costa ainda lançaria, no segundo semestre do mesmo ano, Gal, seu segundo álbum solo, e provavelmente, o mais experimental e psicodélico de sua carreira.

Com a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e consequentemente, o exílio dos dois em Londres, na Inglaterra, o movimento tropicalista sofreu um duro golpe. Gal Costa tornou-se uma espécie de porta-voz de um movimento combalido, a caminho do fim, mas que deixou um legado rico e marcante para as gerações seguintes da música popular brasileira.

Faixas

Lado A 
  1. "Não Identificado" (Caetano Veloso)           
  2. "Sebastiana" (Rosil Cavalcanti)        
  3. "Lost in the Paradise" (Caetano Veloso)      
  4. "Namorinho de Portão" (Tom Zé)    
  5. "Saudosismo" (Caetano Veloso)       
  6. "Se Você Pensa" (Roberto Carlos - Erasmo Carlos)           
Lado B           
  1. "Vou Recomeçar" (Roberto Carlos - Erasmo Carlos)          
  2. "Divino, Maravilhoso" (Caetano Veloso - Gilberto Gil)       
  3. "Que Pena (Ele Já Não Gosta Mais de Mim)" (Jorge Ben)
  4. "Baby" (Caetano Veloso)      
  5. "A Coisa Mais Linda Que Existe" (Gilberto Gil - Torquato Neto)                
  6. "Deus é o Amor" (Jorge Ben)

Ouça na íntegra o álbum Gal Costa

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