“Roberto Carlos” (1970, CBS), Roberto Carlos
Na virada dos anos 1960 para os anos 1970, Roberto Carlos passou por um processo de transição que reorientaria sua carreira artística e, em pouco tempo, o consolidaria como um dos maiores ícones da música brasileira. O perfil de astro efervescente da Jovem Guarda ficou para trás. Isso já começara a se delinear com o álbum O Inimitável (1968), seu primeiro trabalho pós-Jovem Guarda, onde Roberto experimenta pela primeira vez com soul, funk e gospel.
Em 1969, Roberto lançou o álbum Roberto Carlos, com a famosa capa em que o cantor aparece solitário, sentado na areia da praia. Nele, Roberto continuou sua experiência com a música negra americana através de canções que se tornaram grandes sucessos, como "Não Vou Ficar" (de Tim Maia), "Nada Vai Me Convencer" (de Paulo César Barros), "Sua Estupidez" e "As Curvas da Estrada de Santos". Além de mostrar um Roberto mais envolvido com referências de soul, funk e R&B americanos, o disco evidenciou que o cantor adotaria o romantismo como sua identidade artística.
Porém, embora a fama e a fortuna de Roberto Carlos aumentassem a cada novo lançamento, ele ainda não tinha o apreço e reconhecimento da elite e da classe intelectual. Apesar de seu sucesso entre as camadas populares, Roberto percebia que, para consolidar a sua consagração como artista, precisava conquistar esse público mais endinheirado e influente.
Foi então que Roberto e seu empresário, Marcos Lázaro (1925-2003), tiveram a ideia de realizar uma temporada de shows na casa de espetáculos mais moderna e conceituada do Rio de Janeiro, o Canecão, frequentada pela elite carioca. Até aquele momento, Roberto se apresentava em clubes, ginásios e pequenos estádios, com figurinos e cenários modestos. Inaugurado em 1967, o Canecão recebia os mais importantes artistas nacionais e internacionais, sendo o local ideal para que Roberto Carlos alcançasse seu objetivo.
Para gerenciar essa empreitada ousada, Marcos Lázaro convidou Luiz Carlos Miéle (1938-2015) e Ronaldo Bôscoli (1928-1994), dupla de produtores consagrados que participaram do movimento da bossa nova e tinham experiência na direção e produção de shows na TV e em casas de espetáculos. A dupla havia ganhado fama dirigindo e produzindo shows de artistas como Elis Regina (1945-1982), Sérgio Mendes, Wilson Simonal (1938-2000) e Tamba Trio no Beco das Garrafas, reduto de artistas da bossa nova e do jazz no Rio de Janeiro.
Luiz Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, dupla de produtores de espetáculos que ajudou Roberto Carlos a conquistar o público mais sofisticado. |
O espetáculo, intitulado Roberto Carlos a 200 Km Por Hora, refletia a paixão do cantor por velocidade e automóveis, temas recorrentes em suas canções. A cenografia lembrava uma pista de corrida, incluindo um carro esporte no palco e efeitos visuais que simulavam velocidade. O show inovou ao trazer um conceito arrojado, sendo considerado um sucesso tanto pelo público quanto pela crítica, embora alguns dos elementos tenham sido introduzidos para superar desafios técnicos.
A estreia do espetáculo no Canecão ocorreu no dia 3 de setembro de 1970, com casa lotada e a presença de figuras ilustres da elite carioca, como a então Danuza Leão (1933-2022) e o jornalista Ibrahim Sued (1924-1995). A cantora Elis Regina, outrora opositora da Jovem Guarda e agora amiga de Roberto, também esteve presente para prestigiá-lo. O espetáculo permaneceu em cartaz até o final de novembro, sendo um imenso sucesso de público e crítica.
Esse show marcou a estreia de Roberto Carlos cantando ao vivo com microfone de pedestal e haste dobrável, recurso que o acompanharia para o resto de sua longa carreira. Em outubro de 1970, Roberto entrou em estúdio para gravar seu próximo álbum, embora já tivesse registrado algumas faixas em maio daquele ano. O sucesso da temporada no Canecão influenciou diretamente a proposta musical do disco, demandando um cuidado especial na produção.
Apresentação de Roberto Carlos no seu espetáculo Roberto Carlos A 200 Km por Hora, no Canecão, no Rio de Janeiro, em 1970. |
Intitulado apenas como Roberto Carlos—como vinha ocorrendo desde o disco anterior—o novo álbum chegou às lojas em dezembro de 1970, mês que se tornaria tradicional para os lançamentos de Roberto, aproveitando as vendas de Natal. A capa traz uma imagem em alto contraste, em preto e branco, de Roberto Carlos, registrada pela fotógrafa Thereza Eugênia durante uma das apresentações no Canecão. Décimo álbum de estúdio do cantor, esse trabalho de 1970 traz Roberto ainda mais envolvido com a música negra americana, incluindo o gospel, que abriria portas para suas futuras canções de cunho religioso.
O álbum começa com "Ana", uma balada sobre a saudade de um amor perdido, onde o eu lírico lamenta a ausência de Ana e acredita que sua vida desandou após a partida dela. Agora, o sujeito está preso em suas lembranças e sonhos. "Uma Palavra Amiga" é uma balada em ritmo de soul music sobre a superação de um amor não correspondido, cujos versos são acompanhados por um naipe de cordas e metais que dão um tom de dramaticidade à canção. Merece destaque a robusta linha de baixo executada por Paulo César Barros, da banda Renato & Seus Blue Caps.
Em "Vista a Roupa Meu Bem", Roberto canta de forma fanhosa para simular um cantor dos anos 1920, da época do gramofone. Na letra, o eu lírico pede à sua amada que se vista e deixe a praia para formalizarem o matrimônio. "Meu Pequeno Cachoeiro" é um tributo a Cachoeiro de Itapemirim, cidade natal de Roberto Carlos e do autor da canção, Raul Sampaio (1928-2022): "Vivo só pensando em ti / Ai que saudade dessas terras / Entre as serras / Doce terra onde eu nasci".
"O Astronauta" trata sobre um indivíduo desiludido com este mundo marcado por guerras e injustiças. Ele nutre o desejo de se afastar da realidade e viver no espaço sideral, longe da tristeza e da falta de amor que percebe na Terra. Os arranjos da canção refletem a atmosfera melancólica e introspectiva da letra. A combinação do naipe de cordas e de metais cria uma sonoridade suave e espacial, evocando a sensação de imensidão e isolamento, reforçando o tema do desejo de fuga.
"Preciso Lhe Encontrar" traz o desespero e a solidão de um homem que se sente perdido sem o amor que deixou escapar, e busca a todo custo reencontrar esse amor para recuperar o sentido de sua vida: "Minha vida está perdida / Já nem sei pra onde eu devo caminhar / O meu tempo, eu sei é pouco / É preciso amor lhe encontrar". A singela "Minha Senhora" trata do amor sincero e apaixonado de um jovem por uma mulher mais madura. Ele expressa o desejo de namorar e encontrar a felicidade ao lado dessa mulher amada, independentemente das diferenças de idade.
A faixa seguinte, “Jesus Cristo”, é a mais famosa do álbum e inaugura uma tradição na discografia de Roberto Carlos de cada álbum trazer pelo menos uma canção de temática religiosa. “Jesus Cristo” aborda a fé e a busca por orientação espiritual em meio às incertezas da vida. A letra expressa o desejo de proximidade com Jesus, visto como guia e fonte de esperança, e convida os ouvintes a se unirem em uma caminhada coletiva de fé, simbolizada por uma procissão crescente que compartilha a mesma oração e crença. É perceptível a forte influência da música gospel americana nesta, desde o balanço rítmico aos vocais de apoio que acompanham Roberto Carlos.
O romantismo retorna com a calma e a serenidade de "Pra Você", uma canção que trata do lamento e da dor pela perda de um amor, em que o eu lírico expressa a sensação de ter dedicado tudo para a pessoa amada e pede que ela volte para restaurar a alegria perdida. Na ótima e emocional "120... 150... 200 Km Por Hora", que traz um sensível e dramático naipe de cordas em contraste com o peso da bateria e a robustez da linha de baixo, Roberto Carlos usa a velocidade como fuga desesperada de suas dores e lembranças, simbolizada pela alta velocidade e pelo desejo de escapar do passado e da solidão.
Fechando o álbum, "Maior Que O Meu Amor", canção que traz em seus versos o conflito interno do eu lírico entre a vontade de esquecer um amor não correspondido e a incapacidade de superar a dor e a saudade: "Maior que o meu amor / É a vontade de dizer que não te amo / Que não te quero, não te peço e não te chamo".
Roberto Carlos tocando guitarra durante a antológica temporada de shows no Canecão, no Rio de Janeiro, em 1970. |
O álbum Roberto Carlos de 1970 deixou um legado significativo na música brasileira, tanto pelo conteúdo das canções quanto pela transformação da imagem do cantor. Esse disco marcou a transição definitiva de Roberto Carlos para o estilo romântico que caracterizaria sua carreira nas décadas seguintes, afastando-se do rock e da Jovem Guarda. Ao flertar com a soul music, o funk e a música gospel americanos a partir do álbum O Inimitável (1968) e incorporar as orquestrações de arranjos muito bem elaborados, Roberto criou uma sonoridade mais sofisticada e ritmada para o seu trabalho.
Uma das principais contribuições desse álbum de 1970 foi a introdução de temas mais maduros e introspectivos em suas letras, algo que ressoou profundamente com o público e influenciou a música popular brasileira. A faixa "Jesus Cristo" trouxe a temática religiosa e espiritual para o mainstream, enquanto as outras faixas abordavam o amor e a saudade de maneira mais profunda e sofisticada, abrindo caminho para uma nova era de música romântica no Brasil.
Além disso,
o álbum consolidou Roberto Carlos como um ícone cultural, cuja influência
transcendeu a música para se tornar parte da identidade nacional brasileira. As
canções do disco continuam a ser celebradas e reinterpretadas por artistas de
várias gerações, atestando o impacto duradouro de sua obra.
Faixas
Lado 1
1. “Ana” (Roberto Carlos-Erasmo
Carlos)
2. “Uma Palavra Amiga” (Getúlio
Cortes)
3. “Vista a Roupa Meu Bem” (Roberto
Carlos-Erasmo Carlos)
4. “Meu Pequeno Cachoeiro” (Raul
Sampaio)
5. “O Astronauta” (Edson Ribeiro-Helena
dos Santos)
6. “Se Eu Pudesse Voltar No Tempo”
(Pedro Paulo-Luís Carlos Ismail)
Lado2
7. “Preciso Lhe Encontrar”
(Demétrius)
8. “Minha Senhora” (Roberto
Carlos-Erasmo Carlos)
9. “Jesus Cristo” (Roberto
Carlos-Erasmo Carlos)
10. “Pra Você” (Silvio César)
11. “120...150...200 Km Por Hora”
(Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
12. “Maior Que o Meu Amor” (Renato
Barros)
Referências:
· Querem acabar comigo: da Jovem Guarda
ao trono, a trajetória de Roberto Carlos na visão da crítica musical - Tito Guedes, 2021, Editora Máquina
de Livros, Rio de Janeiro, Brasil.
· Roberto Carlos em detalhes - Paulo César de Araújo, 2006,
Editora Planeta do Brasil, São Paulo, Brasil.
·
portalsplishsplash.com
·
wikipédia.org
Existem vários discos de Roberto Carlos que para mim são "quase bons" porque tem algumas canções de seu repertório que eu não gosto muito. É o caso deste LP de 1970, do qual apenas não gosto de "Jesus Cristo" e de "Vista a Roupa meu Bem" (que eu considero como uma daquelas "musiquinhas bem horríveis" dele, no bom sentido). E deste disco analisado, os meus destaques vão para:
ResponderExcluir- "Uma Palavra Amiga" composição de Getúlio Côrtes (o autor daquelas canções "cômicas" que Roberto gravou durante a época da Jovem Guarda, como "O Negro Gato", "O Feio", "Noite de Terror", "Pega Ladrão", "O Gênio" e "O Brucutu");
- "Preciso lhe Encontrar" composição do saudoso Demétrius (o conhecido intérprete da lendária canção chamada "Ritmo da Chuva");
- "120... 150... 200 KM por Hora" composição de Roberto e Erasmo (regravada pelo cantor sertanejo Leonardo em seu primeiro disco solo de 1999, após o falecimento de seu parceiro Leandro, com quem formou uma dupla famosa);
- "Pra Você" composição de Sílvio César (belíssima canção, regravada também pelos saudosos Nelson Gonçalves, Agnaldo Timóteo, Emílio Santiago e Cauby Peixoto, dentre outros intérpretes);
- "Maior que o meu Amor" composição de Renato Barros (o recentemente falecido fundador do icônico grupo Renato e Seus Blue Caps, um dos maiores nomes da Jovem Guarda);
- "O Astronauta" composição de Edson Ribeiro e Helena dos Santos (minha favorita, com um arranjo majestoso de cordas/metais que traz também um toque de psicodelia que remete aos primeiros anos do grupo britânico Pink Floyd, que em 1970 havia lançado um álbum atualmente não muito querido pela própria banda e nem pelos fãs, chamado Atom Heart Mother - conhecido pelos conhecedores como o "disco da vaca").
Uma curiosidade é que além das canções selecionadas para este álbum de 1970, foi gravada também uma outra canção belíssima de RC e que não entrou oficialmente aqui. Trata-se de "A Palavra Adeus" (composição de Fred Jorge), que foi lançada em compacto e que só entrou em coletâneas da época. Por mim, essa entraria facilmente no tracklist do álbum original de 1970, substituindo "Jesus Cristo" talvez...
Enfim, um disco "quase bom" de Roberto Carlos é ainda melhor do que muitos discos "totalmente ruins" de qualquer cantor brasileiro espalhado por aí que hoje em dia faz sucesso de forma bastante efêmera.